“Equalização” significa acto ou efeito de equalizar; uniformização; equilíbrio. É o que dispõe o dicionário da língua portuguesa. Mas também significa, em termos electrónicos, redução de distorção por meio da introdução de redes capazes de compensar a distorção própria de determinada faixa de frequências. Um equalizador gera equilíbrio, sintonia, concordância e sincronia dos sons. Para “linha” há uma panóplia infindável de significados que vão desde traço a fio, comunicação a estilo, molde a orientação, elegância a forma ou fisionomia. Seria bizarro a tentativa de citar aqui o que prescreve o dicionário sobre este vocábulo. O mesmo diria da palavra “vida”, que vai de existência à época, essência ou destino, fisionomia ou biografia, história ou sentido, eu sei lá! Seria igualmente enfadonho fazer a antologia do que este substantivo feminino (é importante que se lhe diga) exprime.
Detenho-me, outrossim, no cartaz e nas obras que enformam esta mostra e dou-me conta de que aquilo que aparentemente parece discordância ou barganha sintáctica deste título – “Equalização das linhas da vida” – é, afinal, a síntese da arte deste prodigioso nome das nossas artes: Chaná de Sá. A estilização usada no rosto que lhe dá voga e por meio do qual se consigna a obra em exposição desfaz qualquer dúvida a este respeito e produz, cabalmente, o sentido deste título e desta proposta ousada.
Chaná é um dos mais inventivos artistas da novíssima geração. Um dos mais dotados e, no entanto, um dos mais humildes. Digo humilde e emprego esta locução no melhor e mais alto sentido da mesma. Sabe do seu ofício e sabe da sua singularidade, mas não se perde na soberba. Cerebral e intuitivo, é ainda um dos nossos criadores mais profícuos e proficientes. Tudo isto subsídio da sua técnica, com o seu traço e com aquilo que ele transmite ou significa. O seu traço é único. As suas cores também. As técnicas, quase sempre miscelânea das mesmas, idem. Tintas naturais, aquarelas e acrílicos.
A vida, o seu sentido e significado, a sua explicação ou o seu milagre – avultam na sua obra cordões umbilicais –, o seu assombro ou a sua dádiva são um tema recorrente da sua pintura. Há sempre nas suas telas cordões, sequências, linhas, cordéis, fios, vínculos. O seu génio criativo parece ater-se a essa procura, a essa busca quase obsessiva: de ligar, ajustar, direcionar, dar um sentido ou significado a essas formas, figuras ou composições, essa busca de sintonia, de sincronia, de frequência e uniformização, com técnicas das mais diversas, cores e traços, às vezes ténues, outras tantas fortes e intensas, que são, no fundo, as linhas da vida, afirmação da procura do entendimento desse destino que a existência, desde o nascimento à morte, se nos impõe.
Estas figurações, estas expressões, estas feições, estes vultos, estas expressões, estes semblantes, estas cores, estas posturas, estas linhas, estes traços, estes sinais, estas impressões que se reproduzem, de forma recorrente, nestes quadros, sempre lá estiveram, ainda que de forma oculta – ou se quiserem dissimulada –, em toda a sua criação. Exprimem a vida ela própria. São a sua tessitura e revelam a sua estrutura, composição ou textura e contextura.
A forma como Chaná trama e ata ou entrelaça estes fios que compõem a vida não é óbvia, mas ali reside a divícia da sua poesia, da sua arte e do seu génio. A arte, a grande arte, não é necessariamente o domínio do explícito. Um poeta, um grande poeta no caso, meu mestre, dizia-me, há décadas, quando eu debutava no ofício: a poesia é a arte da dissimulação. Eu acrescentaria hoje: toda a arte subscreve a arte da dissimulação – passe-se a redundância. Não obstante, a arte não tem que ser necessariamente obscura, nem flagrante. A arte é magnificente, pecuniosa, fecunda. A arte inquieta-nos, desassossega-nos, subverte-nos. Não podemos sair indiferentes de um encontro com a obra de um artista. Um grande artista, como é o caso deste, instiga-nos sempre, provoca, espicaça. A arte, a grande arte, também repara, redime, expia. Quase sempre vamos ao encontro da criação em busca disso mesmo: redenção ou absolvição.
Disse, não há muito, a respeito de artistas da mesma progénie, que se há domínio em que Moçambique se distingue é na criação e no soberbo pecúlio que os artistas, de diversas gerações, erigem quotidianamente. O nosso génio, o génio moçambicano, radica aí: na cultura. Digo cultura e não o seu arremedo ou seu simulacro. Há hoje, entre os novos artistas moçambicanos, nomes assombrosos. Quem acompanha, de perto, o movimento ascensional das nossas artes sabe do que aqui se diz. Estes tipos são talentosos, admiráveis, esplêndidos, assombrosos e assombrados, arrebatados e arrebatadores, enérgicos e pujantes, possantes e vibrantes. Chaná de Sá é um deles. Indubitavelmente.
Cidade do Cabo, 11 de Julho de 2022