Calene é o nome artístico de Cármen Custumes. Vive e trabalha na Beira, sua cidade natal. Este ano, celebra 33 anos de teatro. A seguir, os momentos mais marcantes da carreira da actriz que se notabilizou no programa televisivo Show de Talentos.
Há 33 anos, uma menina que frequentava a primeira classe, na Escola Primária Heróis Moçambicanos, na cidade da Beira, foi seleccionada pelo seu professor para integrar o grupo de teatro da Casa Provincial da Cultura de Sofala. A menina em causa chama-se Cármen Custumes, e, já naquela altura, demonstrava algum talento para a representação, ainda que não desse conta disso. Por isso, já integrada no elenco de actores, foi convidada a desempenhar o papel de macaco, na sua estreia como actriz.
Muito nova ainda, Calene, nome artístico de Cármen Custumes, percebeu que o teatro seria o seu futuro. Naturalmente, e sem grandes pretensões, a pequena actriz foi-se destacando nas apresentações do seu grupo teatral, o que chamou atenção de outros actores mais velhos, que passaram a dedicar-se a convencer Calane a deixar a Casa da Cultura. O falecido professor Arez, que ali encenava peças com crianças, entretanto, conhecendo o potencial da miúda, a protegeu de todos os interessados durante meia dúzia de anos. Depois disso, com 13 anos de idade, a actriz teve mesmo de integrar um novo grupo, chamado Tantan. Para Calene esse passo foi fundamental, pois, além dela, todas as crianças que faziam teatro da Casa da Cultura desistiram.
Mais ou menos adolescência, quando alguns deveres de casa passam a fazer parte da sua responsabilidade, a mãe de Calene entra em cena. Laurinda Lopes não queria saber de a filha estar a fazer teatro. Para ela, a arte era coisa de marginais e drogados. Além disso, muitas vezes, quando voltasse da escola, Calene corria logo para os ensaios, deixando para depois os seus deveres domésticos.
Certo dia, farta da teimosia da filha, Laurinda Lopes foi ao local dos ensaios com uma pilha de louça por lavar. O propósito era claro: envergonhar a actriz convicta de que assim ela desistiria do grande sonho. Calene não lavou a louça na Casa da Cultura. Voltou a casa cabisbaixa, toda contrariada. Mas não desistiu. Continuou a seguir em frente.
Vendo que o truque da louça não surtira o efeito desejado, Laurinda Lopes adoptou outras estratégias. Por exemplo, esconder um dos chinelos da miúda sempre que se aproximava a hora do ensaio. Sem um dos chinelos, a pequena actriz ficaria em casa. Ou iria descalça? Nem uma coisa nem outra. Calene usava um chinelo e ia aos ensaios simulando uma ferida no pé descalço.
Firme no teatro, Calene saiu do grupo Tantan e integrou Meia Preta. Depois, seguiu-se Massinguita, Haya-Haya (fundado há 30 anos) e Só Mulheres (que ajudou a fundar há 15 anos. Neste apenas integram actrizes).
Em 2008, a Stv lança Show de Talentos. Este programa televisivo foi importante para que a mãe de Calene sobrevivesse a uma infecção pulmonar e deixasse de pensar que a arte é coisa de artistas. Mas vamos por partes.
Quando o actor Pastor Djito ficou a saber do Show de Talentos, Calene acabava de admitir para a Universidade. Mesmo assim, Djito convenceu-a de que aquele programa era a “cena”. Calene não teve dúvidas disso, mas teria de deixar muitas coisas para trás. Nessa altura, sem condições para pagar a Faculdade, a actriz vivia desenrascando. Além de viver apenas com o filho mais velho, tinha de cuidar da mãe doente, que padecia de tuberculose. A escola estava a ser um fardo. Financeiramente, a vida não estava grande coisa. Indecisa, conversou com alguns familiares para saber o que achavam da ideia dela ir à procura do seu sonho. Uns a incentivaram, outros disseram que se fosse para Maputo, a mãe morreria porque ela era a filha que melhor cuidava da mãe enferma. Calene tomou uma decisão. Trancou a Faculdade. Vendeu uma mesa de bilhares a 25 mil Meticais e com o dinheiro comprou alimentos para três meses e pagou adiantado o aluguer da dependência que alugava a 700 Meticais por mesmo período.
O dinheiro da venda da mesa de bilhares, igualmente, uma parte foi dividida com a mãe e o outro valor pagou uma trabalhadora por um trimestre. Asseguradas certas responsabilidades, a actriz deixou o filho de 4 anos de idade com uma sobrinha de 15. Aí Calene viajou para Maputo a fim de participar no Show de Talentos. Contra as suas expectativas, na primeira semana adoece. Devido ao seu estado, teve uma consulta com um psicólogo, contactado pela organização do evento. “Eu fiquei doente por duas razões, e o psicólogo confirmou-me. Primeiro, quando viajo para participar no programa eu era uma mulher muito irrequieta. Sendo mãe-solteira, tinha de correr muito para conseguir algum dinheiro para sustentar a mim e ao meu filho e ainda ceder alguma coisa à minha mãe. No Show de Talentos mudo radicalmente de vida. Ao invés das lutas diárias, passo a ter tudo disponível: as refeições, a piscina, e etc. Praticamente fiquei monótona. A minha vida resumiu-se aos ensaios, quando eu não estava habituada a receber nada de outras pessoas. Tudo o que eu conseguia era resultado de muito esforço. Além disso, eu andava preocupada com a minha mãe. Lembro-me que no programa não conseguíamos contactar com a família e isso foi-me muito difícil, por saber que a minha mãe estava doente”.
Diagnosticado o problema no Show de Talentos, Calene deixou a angústia para trás e focou-se no que melhor sabia fazer: representar. Do programa, confessa a actriz, surgiu uma visibilidade nunca pensada. Antes do programa, os beirenses conheciam-na da rádio, onde também fazia humor. Depois do programa, a sua notoriedade explodiu e passou a ter vários espectáculos a nível nacional.
No dia em que regressou à sua cidade natal, mesmo sem terem vencido o concurso, Calene e Pastor Djito foram recebidos com muitos holofotes. À sua espera, estiveram o filho, familiares, amigos, vizinhos, conhecidos, curiosos e etc. A actriz sentiu a ausência daquela senhora que deixara doente e de quem não teve notícias durante três meses: a mãe. Perguntou a uma tia onde ela se encontrava. Embriagada, a tia perguntou-lhe: “não acompanhaste?” Calene gelou. Sentiu medo. “Essa frase marcou-me tanto que até hoje, quando me perguntam sobre alguém que me é próximo, respondo: não acompanhaste?”.
Convicta de que a mãe tinha morrido na sua ausência, depois daquela pergunta, eis que a tia responde que a mãe estava em casa. Foi na casa dela que ficou a saber do que se passou na sua ausência. “Numa das conversas que tive com a minha mãe, quando voltei a Beira, ela disse-me que o que a manteve viva não foi o tratamento de tuberculose, mas o desejo de me querer ver a actuar no Show de Talentos. Ela ansiava com que o domingo chegasse para que me visse a representar. Essa foi o maior tratamento da minha mãe. Disse-me”.
A senhora que antes não queria saber da filha ser actriz e que achava que a arte era para marginais, ao ver a filha a brilhar na televisão, percebeu finalmente a mensagem dos artistas. Compreendeu o sonho que a filha começou a construir aos sete anos de idade mais de 20 anos depois. Hoje, Laurinda Lopes diz que não imagina Calene a fazer outra coisa que não seja teatro e que, depois do Presidente da República, os artistas são os mais importantes no país.
Um ano depois do Show de Talentos, Calene voltou a frequentar o curso de Gestão de Recurso Humanos, na Universidade Pedagógica. Ali formou-se e agora perspectiva um mestrado. Enquanto a oportunidade não chega, muito por causa da agenda, concilia o teatro com o trabalho no Departamento de Cultura do Conselho Municipal da Beira, onde é funcionária.
A morte de Pastor Djito
Com Pastor Djito, Calene conquistou Moçambique. As suas peças hilariantes foram bem recebidas pelo público de tal forma que propostas de trabalho não faltaram aos dois. Inclusive, ambos foram convidados a trabalhar numa televisão em Maputo. Entretanto, feitas as contas, a oferta não compensaria as necessidades da actriz. Pastor Djito aceitou e seguiu para trabalhar na televisão. Calene continuou na Beira, mas sempre ligado ao amigo e colega de trabalho. Apenas a morte lhes separou. O episódio dá-se quando o actor viaja para enterrar o pai, na Beira, que perdera a vida na África do Sul. Depois do funeral do pai, Pastor Djito apanhou uma malária e, meses depois, morre. “A perda dele foi um momento muito triste para mim e traumatizante. Mas quando tens Deus, tens tudo”.
Com a morte de Pastor Djito, mais tarde Calene encontrou uma nova dupla. Chama-se Aníbal, e juntos fazem parte do grupo teatral Haya-Haya. Ambos trabalham em dupla, por exemplo, nas cerimónias de casamento, nos baptizados, nas graduações ou nos stand up comedy. Além de Aníbal, Calene também faz dupla com o filho Denilson (Dany) e com o esposo Dário Mucavele, igualmente actor. Na verdade, os dois conheceram-se num festival de teatro realizado na Beira. Depois de um ano a namorarem à distância, o actor deixou Inhambane e foi casar-se com Calene lá nas bandas do Chiveve.
O teatro no Chiveve
Fazer teatro na cidade da Beira é interessante, segundo Calene, porque as pessoas gostam muito da arte da representação. Por isso, não faltam projectos. Além de trabalhar com Haya-Haya e Só Mulheres, a actriz colabora com Fusão de Actores, artistas de grupos diferentes. Esse grupo fez a peça Marcas do Idai, apresentada em todo o país. O espectáculo conta o drama do ciclone que arrasou o Centro do país, segundo Calene, principalmente por causa da ignorância: “Por ignorância, naquela noite de 14 de Março, muitos de nós fizemos piadas do ciclone na cidade da Beira. Desprezamos o Idai e isso custou-nos muito”.
Marcas do Idai foi, eventualmente, o espectáculo teatral que mais rendeu a Calene em termos financeiros. “Fizemos muito dinheiro com essa peça. Alguns actores do grupo até conseguiram comprar carro. Eu levantei a minha obra”.
O espectáculo foi apresentado diversas vezes no Novo Cine, na Beira, com capacidade para 614 lugares. Pela adesão, chegava-se a vender 700 ingressos. “Na Beira, o teatro compensa no final do mês, quando coincide com o vencimento. Mas com essa peça, qualquer altura do mês servia”.
Marcas do Idai teve encenação colectiva e contou com a participação de cinco actores. Os ingressos foram vendidos a 250 Meticais e sempre esgotaram antes do dia da apresentação. “É uma peça contagiante, com comédia, drama e tristeza. As pessoas riam e choravam. Trabalhamos muito na encenação, com música, casas montadas que desabavam. Isso mexeu muito com as pessoas e, por isso, apresentamos de novo essa peça no dia 14 do mês passado. O Conselho Municipal da Beira pagou-nos e assim as entradas foram livres para os munícipes”.
O teatro em Moçambique
Na percepção de Calene, não é fácil fazer teatro no país. Por isso mesmo, o Governo deve reparar muito nos actores porque, adianta, há uma percepção errada de que arte e cultura é apenas música. “Para os nossos governantes, cultura é música. Por exemplo, nas campanhas eleitorais, nunca aparece um actor, mas os cantores estão sempre lá. O artista em geral vive de arte. Sem oportunidades não têm como sobreviver. Na Beira escasseiam cine teatros. Ficou-nos a Casa da Cultura e o Novo Cine, agora Auditório Municipal. O Governo deve prestar mais atenção ao teatro”, sobretudo neste período em que, por causa da COVID-19, estamos todos em casa. No meu grupo, Só Mulheres, existem muitas actrizes que vivem do teatro. O que será delas agora?”.
Cármen Custumes nasceu no Hospital Central da Beira, no bairro Macúti. É mãe de três filhos, dois rapazes e uma menina, e considera que o teatro deu-lhe tudo. “Tudo o que eu tenho é graças ao teatro, inclusive a minha família. Então fazer teatro para mim é como respirar”. Neste percurso, ajudam-na a respirar colegas como António Garcia (Apingar) e Lúcio Chiteve, ambos encenadores.
Além de actriz, também é publicitária e activista social. Essa é Calene, a “mulher que quando se espalha, ninguém a junta”.