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Até já, amigo e mestre, Pe. Manuel Ferreira!   

Por: Dany Wambire

 

A primeira letra deste texto saiu-me às 23h59 de 1 de Maio, o dia em que decidiste partir. Não quis deixar para o dia seguinte a celebração da tua partida, uma das mais serenas que eu já acompanhei.

Soube da tua partida às 14h43 minutos, através do Rogério. Sem lhe perguntar, assegurou-me que recebera a informação de fontes seguras. Em momento algum ocorrera-me fazer telefonemas ou cruzar fontes. Não queria sofrer demais com esta informação. Tu tinhas estado comigo há umas semanas. Trabalhamos de forma intensa para que o teu livro saísse antes de regressares a Portugal para tratamentos. Estavas debilitado e sentias muita dor, mas não querias regressar a Portugal sem realizares o teu lançamento na Beira e no Maputo.

Acho que, por alguma razão, o livro não saiu antes. Podia ter saído mais cedo, pois me tinhas enviado a primeira versão a 26 de Abril de 2022, umas duas semanas depois da Páscoa daquele ano, e quis o destino que os textos fossem lançados na Páscoa de 2023. A acompanhar o anexo dos textos, vinha o seguinte: “Proponho-te que os vás lendo. E se encontrares alguns, de que gostes, fica-te com esses e outros deita fora. Se vires que alguém pode aproveitar com a sua publicação, faz de contas que são teus, fazes deles o que bem entenderes”.

Como editor (imagino-te a sorrir ao ouvires isto), fiz o que bem entendi: coloquei os textos na fila de espera e li-os apenas quando soube que vinhas para Moçambique em Janeiro deste ano. Li o livro de poemas, li o livro com lições de Português que andavas a dar por aí (lembras-te deste “por aí”?) aos teus alunos e reli o livro de ensaios sobre os 56 romances africanos que já me tinhas enviado.

Entendi que, do conjunto de livros que me pediste para publicar, aquele era o mais urgente. A razão: naquele livro tu celebravas a vida que foi a tua: os momentos da tua infância entre a Mina e a Ribeira, no qual a Deus, através do poema: rip (p. 19), tu fizeste um pedido: “dá-me dois metros de paz”, que, com certeza, vais ter agora.

Em Fevereiro, confirmei-te que iria publicar o livro de poemas e começamos a trabalhar. Submetemo-lo a trabalhos editoriais: cortamos-lhe alguns poemas, retiramos-lhe o texto de apresentação e demos-lhe um título simpático.

Mas quando tudo corria normalmente, tu enviaste-me um e-mail, no qual, de forma suave, pedias-me urgência. De forma suave ou não, tu sabes que mandavas em mim. Mas fiquei mais sensibilizado com o teor da tua mensagem: “Olha, tenho andado a emagrecer muito e sinto-me cada vez debilitado. E então deixei-me ir completamente abaixo, quando soube que me foi diagnosticado um tumor na cabeça do pâncreas. Ainda não sabemos ainda se é benigno ou maligno. De Lisboa, tanto o médico como os superiores me serenam e inspiram confiança. E nenhum deles me diz que regresse logo-logo, mas é claro que não podemos perder tempo”.

Calhou-me passar por Maputo, alguns dias depois de me teres mandado a mensagem, e fui visitar-te a Kim Il Sung. Confirmei o que tinhas escrito na mensagem. Mas conversamos longamente. Apesar da dor da enfermidade, o teu bom humor estava ali e querias conversar. Mas eu precisava de partir (queira eu para te fazer companhia nesta viagem infinita que seguiste), tinha um evento a escassos minutos. Mais, tu foste a tempo de surpreender: equilibraste-te naquele chão de parqué, foste ao quarto e trouxeste-me um presente. “Trouxe-o de propósito de Portugal para to oferecer”, disseste-me quando eu ensaiava recusar o presente.

Acompanhaste-me até à porta e vi que estavas muito debilitado. Bem que me apeteceu dizer-te: “tenhas coragem, padre! Vai estar tudo bem”. Mas evitei, pois tu, com certeza, mesmo naquele estado, haverias de dar uma boa gargalhada, troçando-me: “então, queres ensinar a fé a um padre?!”

Os dias para a tua viagem a Portugal aproximavam-se. Estávamos a uns quatro dias. Nós queríamos fazer duas apresentações do teu livro, mas não tínhamos os exemplares ainda. Estavam numa gráfica, na África do Sul. Na fé, marcamos as datas de lançamento, para Beira e Maputo. Na Beira, só conseguimos ter os livros a 24 horas do evento. Graças a Deus, tudo correu bem. Tivemos o lançamento, que lembrava mais uma despedida do que um evento comum. Eu tinha esse pressentimento, muita gente, naquela sala, tinha esse pressentimento, mas ninguém queria assumir publicamente. Mesmo tu, padre, sereno, leste-nos os olhos e fizeste questão de nos acalmar, dizendo: “eu volto a Portugal e vou ficar bem.” Todos nos lembramos disso. Todos lembram-se disso e de várias coisas boas que fizeste a pessoas que cruzaram o teu caminho.

Tu disseste, com algum exagero, no dia do lançamento do teu livro, que eu era uma figura benemérita da Beira por estar a contribuir para a educação das pessoas, sobretudo de crianças e jovens, através dos projectos a que estou ligado ou ajudei a fundar. Sei que te enchias de júbilo quando ouvias gente desinteressada falar ou escrever sobre nossos projectos (mais teus do que meus), como foi o jornal Público, pela forma eufórica como tu me escreveste depois da publicada a matéria. Na mensagem, pensas tu, que celebravas a minha vitória. Mas celebravas mais era a tua vitória por teres sabido dar amor a quem mais precisava, por teres conseguido transmitir conhecimento a alguém, talvez, com pouca margem para progredir, por seres verdadeiro e por teres ajudado a sonhar a várias pessoas improváveis.

Sabido isso, vamos às comparações. Entre mim e tu, quem é a figura benemérita da Beira? És tu, obviamente. És tu o princípio e o fim dos projectos que ando a sonhar. Tudo quanto faço é o prolongamento do que contigo aprendi nas inúmeras lições no pátio da Paróquia de Matacuane, na biblioteca do Centro Cultural Padre Cirilo, onde, inicialmente, ficou hospedada a Associação Kulemba, que muito te orgulha, e centenas de correspondências que trocamos no âmbito da edição e revisão da revista Soletras.

Antes de terminar, uma confissão. Sabes como me enchi de alegria quando te vi entrar, pela primeira e última vez, na Livraria Fundza, para lançares o teu livro? Gostei de te ver sentado com pose de rei numa das poltronas do pódio da livraria. Aquilo, confessaste depois, dava-te imensa consolação. O que tinhas semeado, dava frutos. Naquela poltrona, tu te sentias o dono daquilo tudo. Com todo mérito.

Fecho estas sentidas palavras agradecendo à literatura por me ter apresentado a ti. Eras padre, eu sei disso. Mas contigo conversei mais sobre literatura e sobre como essa arte podia ser um instrumento para tornar este mundo mais humano. Deixaste-me nesta batalha.

Espero que estejas a ter um descanso merecido e com sentimento de missão cumprida.

Até já, amigo e mestre, Pe. Manuel Ferreira!

 

 

 

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