Onde nós começamos é onde nós terminados.
in “Where we start”, David Gilmour.
Boa tarde a todos!
Começo esta intervenção com um exercício anacrónico. Há umas semanas, no outro lado da cidade, a Alcance Editores lançou o livro O rosto e o tempo, antologia poética que reúne textos publicados por Armando Artur ao longo de 35 anos de percurso literário. Durante a cerimónia, lembro-me de ter ouvido Albino Macuácua (apresentador do livro), Lucílio Manjate (organizador da antologia) e Álvaro Taruma (poeta convidado ao evento) sublinharem qualidades literárias arturianas, apoiando-se no argumento de que Armando Artur é um autor comprometido com questões ligadas à reinvenção do ser, oscilando nessa fronteira entre o estético e o filosófico.
Taruma até foi mais longe, ao defender que Armando Artur é a prata da poesia moçambicana, sendo José Craveirinha o ouro inalcançável. As posições de Macuácua, Manjate e Taruma despertaram-me a seguinte pergunta: como é que se podem resumir as qualidades de Armando Artur, exaltadas na cerimónia de apresentação de O rosto e o tempo? Ao invés de uma resposta assertiva, naturalmente, ocorreu-me o termo génio. No entanto, nada a ver com o génio da lâmpada dos desenhos animados de Aladdin, que os meus filhos tanto gostam. A noção do génio a aqui invocada tem a ver com essa entidade demiúrgica que, durante o Romantismo, acreditou-se ser responsável pelo processo criativo dos poetas.
A noção do génio romântico é interessantíssima, pois contribuiu para o surgimento da grande crítica literária moderna, o Biografismo, que teve como expoente o francês Saint-Beuve. O Biografismo defendia que para se estudar a obra, antes, devia-se desenvolver um estudo aprofundado sobre o autor. Por exemplo, com enfoque nos seguintes aspectos: origem, naturalidade, relações de parentesco, de afecto, os gostos, as preferências e as convicções do autor. Para teoria biografista, havia uma ligação umbilical entre o autor e a obra. “Tal árvore, tal fruto”. Assim, para a compreensão da escrita, acreditava-se que o crítico tinha de conviver com o autor, pois todos os aspectos da sua vida encontram-se reflectidos na obra.
Apesar da sua importância, sobretudo como referência da crítica literária moderna, o Biografismo mereceu muitas críticas. Afinal, a escrita é uma coisa e o autor é outra. A obra não traduz necessariamente o que o escritor/ poeta pensa ou acredita. Aliás, sendo o poeta um fingidor, conforme sugere Pessoa, sempre pode escrever sobre matérias contrárias as suas próprias convicções. Segundo, os críticos dedicavam-se mais a estudar o autor do que a sua escrita.
No séc. XIX, o Método Histórico Filológico aparece como proposta, digamos, actualizada para os estudos literários. Ao contrário dos biografistas, o historicista Hippolyte Tain vai propor o estudo da obra mais focada ao contexto de produção, se preferirmos, a aspectos históricos. Quer dizer, nesta perspectiva não há um génio que vai conspirar para que o autor tenha qualidades únicas e irrepetíveis. Esta teoria baseia-se no ambiente civilizacional. Isto quer dizer que, enquanto o Biografismo entendia que o autor é singular, logo a sua obra também, o Método Histórico Filológico defendia que não existem qualidades únicas e irrepetíveis e que as condições sociais contribuíam para que os autores tenham semelhanças. Portanto, para o Historicismo, o que no Biografismo torna o autor génio, mediante questões psicológicas, é fundamentado por aspectos sociológicos: raça, meio e momento. Quer dizer, as pessoas da mesma raça, do mesmo meio e do mesmo tempo apresentam proximidades criativas. Como se pode depreender, este entendimento foi ultrapassado ao longo dos anos.
Ora, iniciei a minha intervenção com esta breve apresentação teórica porque o livro de Armando Artur, Minhas leituras e outros olhares, nos conduz ao melhor que o Biografismo e o Historicismo propõem. Por um lado, ao lermos este livro compreendemos que autores foram determinantes na estruturação do pensamento arturiano, desde a adolescência até agora. Esta é uma viagem pelo tempo que permite delinear a biografia intelectual do poeta, isto é, uma biografia diferente daquela que assenta em questões mais pragmáticas: natalidade/ naturalidade, descendência e etc. Na verdade, com este exercício pausado, introspectivo, Armando Artur sublinha o que não deve tão-pouco constituir novidade: os intelectuais e todos os que aspiram a escritores são produtos de leituras e do que fazem com isso. Certamente, há aqui uma espécie de filiação literária imprescindível a quem se interessa pela escrita do poeta.
Por outro lado, os textos escritos e publicados no jornal O País, entre 2019 e 2020, como se lê na nota do autor, “constituem simplesmente um olhar de um leitor apaixonado e extasiado por outros cultores”. Dito de outro modo, o livro não traduz apenas um eterno respeito pelos seus heróis da palavra. De igual modo, aduz uma apreciação desinibida e espontânea sobre os fundamentos da escrita dos autores contemplados. Portanto, não se trata aqui de crítica literária ou ensaio com proposições académicas. Não. Ao invés disso, o nosso autor optou por um exercício mais íntimo, através do qual se posiciona como leitor do mundo.
Os 10 livros poéticos publicados por Armando Artur desde 1986 não são consequências directas das leituras que o autor fez, conforme diriam os biografistas. No entanto, essas mesmas leituras, ao conduzirem o poeta pelo universo das descobertas, consentiram a construção de territórios literários onde habitam sujeitos preocupados com a referida (re)escrita do Ser, no cruzamento entre o estético e o filosófico.
Todo o leitor tem referências literárias. Entre as suas, Armando Artur destaca Luís Bernardo Honwana, Marcelino dos Santos e tantos outros poetas e escritores que deixaram de ser estrangeiros porque, como os nossos, já não cabem em muros construídos em jeito de fronteiras. Por exemplo, Carlos Nejar, Pablo Neruda, Franz Kafka, Khalil Gibran, Mikhail Gorbatchov, Albert Camus, Paul Éluard e, claro, Sophia de Mello Breyner Andresen. Com alguns destes autores, Armando Artur conviveu e fez-se amigo. Ficamos a saber disso ao lê-lo e a grande consequência que daí advém é mesmo essa: conhecimento alargado sobre os autores retratados.
De facto, num primeiro momento, Armando Artur assume as referências literárias sobre as quais escreve como o fio condutor de uma trajectória biográfica, ao nível intelectual, que se deve tirar o maior proveito. O poeta é a ligação entre a obra imortalizada (dos outros) e a sua (própria) experiência na condição de leitor voraz. Logo, em Minhas leituras e outros olhares não se aprofundam conhecimentos sobre o homem, as suas relações, os seus amores, as suas decepções, a sua carreira profissional ou realizações de vida, mas aprofundam-se conhecimentos sobre os seus universos intangíveis, nos quais habitam a matriz, a forma e, quiçá, as principais ferramentas do trabalho literário.
Porque ao exprimir-se, na verdade, Armando Artur também está a pensar nos outros, o seu livro também funciona como introdução às leituras que construíram autores de sua geração. Assim, este livro composto por 155 páginas condiz, parcialmente, com a visão de Hippolyte Tain, quando o crítico francês afirma que não há particularidades únicas e irrepetíveis entre os autores, pois a época e as condições sociais contribuem para que os poetas apresentem semelhanças (em muitos casos, sem se terem lido). O meio e o momento podem contribuir para o que Julia Kristeva designa intertextualidade, todavia, não há aí receitas e nem sequer prescrições teóricas do que literalmente aproxima ou deixa de aproximar a escrita de autores contemporâneos ou conterrâneos.
Em todo o caso, Minhas leituras e outros olhares é um livro através do qual podemos captar os títulos que, por exemplo, os escritores nacionais, hoje consagrados, leram desde os anos 80. Quem se interessa pela história literária de Moçambique ou pelo processo evolutivo dos nossos autores vai encontrar neste livro marcas indeléveis de como a arte da palavra, no país, consolidou-se ao longo de décadas na sua relação com o exterior. A literatura nunca se trancou a um território, seja de pedra ou imaginário, e muito menos se limitou a uma orla hidrográfica. Afinal, bem sugere Guimarães Rosa, há sempre uma terceira margem do rio que, inclusive, nos faz exploradores de nós próprios e das nossas circunstâncias.
A literatura sempre superou contextos, crises e desastres, edificando, com efeito, pontes que viabilizam travessias seguras e constantes, nem que seja para um lugar qualquer. Honestamente falando, penso em Minhas leituras e outros olhares como uma ponte que nos convida a olhar o passado com acuidade. Neste mundo tão acelerado e que o presente parece eterno, é importante parar, contemplar, lembrar e reconhecer a relevância desse lugar comum que são as nossas memórias.
A paixão pela arte literária é o grande pretexto para esta viagem pelo passado que, definitivamente, projectará futuros de todos que souberem aproveitar as várias lições encobertas. É como entende Ricardo Santos, o Escutador de silêncios, está aqui um manual de leitura para aqueles que pretendem ser poetas e escritores. Aliás, há milhares de anos, Horácio, em A arte poética, já defendia que apenas se torna poeta quem antes investe na sua própria formação. Se reconhecermos o papel formativo da leitura no desenvolvimento das habilidades linguísticas, realmente, a partilha de Armando Artur tece possibilidades irrepreensíveis na apresentação de obras que se devem ler antes de se ousar escrever um verso.
Como diria Levi-Strauss, as obras e os autores a que se refere Armando Artur, neste seu novo livro editado pela AEMO, despertaram no poeta pensamentos desconhecidos. Julgo que esta asserção é importante considerar porque o mesmo acontecerá, certamente, com quem for a lê-lo.
Minhas leituras e outros olhares não é um lugar de certezas, é, sobretudo, um lugar de partilha de emoções. Tudo começa com literatura, com poesia para ser mais específico. Depois, lá segue a ficção a colocar altas doses de prazer na oficina da palavra. E porque a escrita literária não está desligada dessas vicissitudes humanas a que Kafka baptizou de Metamorfoses, Armando Artur pensa o lugar da humanidade no planeta, demonstrando a sua sensibilidade política na interpretação dos fenómenos sociais. Ao escrever sobre a obra do último líder da União Soviética, por exemplo, afirma:
Há muito que se aprende lendo Perestroika de Mikhail Gorbatchov. E também há muito que se diga sobre o mesmo livro. Muitas das questões e análises trazidas ao de cima mantêm-se actuais. Se o processo moçambicano pode ou não aprender com a perestroika, eu diria que sim, e muito!, uma vez haver, em muitos aspectos, semelhanças e dissemelhanças (p. 70).
Nesse excerto, Armando Artur refere-se ao contexto político moçambicano, que, no passado, tanto se inspirou no marxismo-leninismo e no stalinismo soviético. O poeta sabe, com efeito, o que a restruturação gorbatchoviana significa num país em que a corrupção e os jogos de poder que a preserva envergonha todo um Estado, como se tem dito, com tudo para dar certo.
A referência à Perestroika, neste livro, parece-me muito oportuna para o contexto em que vivemos. Armando Artur soube ir buscar a algum lugar, lá atrás, um livro decisivo para entender a actualidade sem confrontos, possivelmente, indelicados. O bom trato intelectual, disfarçado em poeta e num exercício de memória possibilita-lhe dizer muito sem ter de atravessar atalhos armadilhados.
O que começa com a badalada Perestroika, continua com Os condenados da terra, de Frantz Fanon. Esse é outro livro obrigatório para quem pretende aprender a pensar o país e o continente. No seu texto, Armando Artur provoca o leitor, convidando-o a responder a perguntas retóricas. Por isso, ao invés de algumas respostas: “Deixo aqui o leitor, dentro da sua liberdade, fazer as suas próprias conjecturas”, (p. 77).
Com a menção a’Os condenados da terra, Armando Artur faz uma ode ao pensamento africano, lembrando-nos que, à semelhança do passado, não devemos tolerar qualquer tipo de opressão. Portanto, o poeta, com estas Minhas leituras e outros olhares, faz da literatura um excelente objecto semiótico na busca pela compreensão do indivíduo, do território nacional e do espaço continental. Pode-se reconhecer esse apanágio em “África responde a Sarkozy”, um texto acutilante, profundo e reflexivo, em que o autor exibe perspicácia na revisão bibliográfica. “África responde a Sarkozy” trata de temas muito actuais, desde o colonialismo, o racismo ou mesmo o preconceito sempre baseado em coisas fúteis.
Para terminar, leio aqui duas passagens que, de alguma forma, resumem o que disse até aqui e que justifica a leitura desta obra. A primeira passagem é extraída do prefácio assinado por Ungulani ba ka Khosa. Diz o seguinte: “É sempre reconfortante conhecer a estante de livros dos escritores e poetas. É lá que descortinamos as suas grandes famílias literárias e, por vezes, assistimos, deslumbrados, à emersão de parte da oficina literária”, (p. 7).
A passagem seguinte, com efeito, é do próprio Armando Artur: “Penso que qualquer que seja um texto literário, neste caso, da lavra de um poeta, haverá nele inegavelmente marcas da sua vivência literária e social”, (p. 14).
Ambas as passagens são testemunhos de toda essa carga textual que proporcionam ao leitor, aos potenciais escritores e estudiosos de literatura, matéria indispensável para pensarem a escrita de Armando Artur e dos autores sobre os quais escreve. Há-de ser por reconhecer a relevância disso que, umas semanas depois de ter tido o privilegio de publicar, no jornal O País, o que agora é primeiro texto do livro (não digo o título de propósito, para que fiquem curiosos), um agente de um poeta brasileiro enviou-me um e-mail a solicitar os contactos de Armando Artur, sem esconder a admiração ao nosso poeta ou pelo menos ao seu texto. O agente estava deslumbrado com esse primeiro texto deste livro e… mais não digo porque as narrativas abertas, claro está, estimulam a imaginação.
Muito obrigado a todos!
[1] Texto escrito de cor (e ampliado) na sequência da apresentação do livro Minhas leituras e outros olhares, de Armando Artur. A cerimónia de lançamento realizou-se dia 8 de Dezembro, na AEMO.