A grandeza dos homens também se mede pela
capacidade de reconhecerem os seus erros.
in No verso da cicatriz.
Boa tarde a todos.
Eu chamo-me José dos Remédios e, hoje, terei a oportunidade de partilhar convosco as minhas leituras sobre um belíssimo livro, que é No verso da cicatriz, de Bento Baloi. É um romance que, inclusive, leva-nos a viajar pelas várias latitudes de Moçambique. Mas esta ainda não é uma tentativa de apresentar o livro. Antes de me perder, eu gostava, primeiro, de felicitar ao Município de Quelimane, em especial ao Presidente Araújo. Tenho acompanhado o bonito trabalho que tem sido feito cá em prol da literatura. Sei que cá temos uma feira do livro e que o Município tem adquirido livros de autores moçambicanos, ora promovendo as obras desses mesmos autores, ora criando condições para que a literatura chegue a mais pessoas e possa funcionar como ferramenta para compreensão do no nosso espaço existencial e do nosso tempo.
Eu acho que este tipo de iniciativa, como a Feira do Livro de Quelimane, que este ano homenageou Eduardo White, é tão necessária quanto urgente. Infelizmente, nem sempre conseguimos a possibilidade de ter muitas réplicas em vários municípios a nível nacional. Quando calha um município funcionar como um espaço que pensa e vive a literatura, fazendo com que a experiência literária seja partilhável, é algo notável.
Também quero agradecer e felicitar ao Bento Baloi, lá mais para frente posso esquecer-me, por este No verso da cicatriz que funciona como uma espécie de introdução ao que Moçambique foi, ao que Moçambique é e ao que Moçambique pode ser em função das nossas leituras do passado. É um livro muito coerente, profundo e acutilante. Eu tinha de dizer isto publicamente ao Bento porque, para mim, é uma oportunidade de reconhecer o grande livro que é No verso da cicatriz. Deu-me muito gosto lê-lo e já o considero um dos melhores romances moçambicanos publicados nos últimos anos.
Para encerrar esta página dos agradecimentos, agradece-vos a todos, por terem vindo cá participar nesta celebração à arte literária, que é, essencialmente, um momento de partilha. Nem sempre temos um público para dizer o que nós pensamos. Então, em reconhecimento ao vosso gesto, aproveito esta ocasião para vos contar um segredo. Não vão contar a ninguém, não é? Os segredos não são se devem recontar.
É assim, há um ano, eu ganhei este livro e li-o. É interessante que na mesma época eu fui convidado pela revista literária Mayombe, de Angola, a escrever um artigo sobre um livro da literatura moçambicana, à minha escolha. Como já tinha lido No verso da cicatriz, decidi que o meu artigo seria sobre este romance. Então, em Setembro de 2021, o artigo foi publicado em português e em inglês na Mayombe. Mas o segredo não é esse, que cá estou a fugir do assunto, mas o seguinte. Quando terminei de ler o romance, eu disse cá para os meus botões, eu gostaria de apresentar este livro. Mas estava num dilema, porque como potencial apresentador do livro, eu não tinha essa luz verde para poder manifestar tal interesse. O autor tem sempre de escolher quem quer que apresente o seu livro e eu não iria querer mudar isso. Então, fiquei a contar com a sorte, à espera que os astros conspirassem de modo que o Bento me convidasse para apresentar o romance, mas isso não aconteceu. Quer dizer, quem apresentou o livro pela primeira vez, na Fortaleza de Maputo, foi um grande professor, Francisco Noa, que, inclusivamente, faz parte da minha formação literária. E fê-lo muito bem! E pronto. Não ficou nenhum ciúme e nem nada disso. No entanto, apenas julguei que tinha perdido uma oportunidade de dizer publicamente o que penso do livro. Até que há dias, Bento Baloi liga-me a convidar-me para apresentar No verso da cicatriz em Quelimane. O convite foi ainda especial do que se tivesse sido feito para apresentar em Maputo, onde vivo, porque Quelimane também me diz muito. A minha mulher, Angélica Pereira, nasceu em Maquival, aqui pertinho. Eu não conhecia Quelimane, esta é a minha primeira experiência na única cidade do Centro do país que não conhecia. Então, vir a Quelimane por causa de literatura e ainda conhecer a terra-natal da minha mulher é algo realmente especial e, afinal, os astros conspiraram para que isto acontecesse.
Há um ano, ao artigo que escrevi para Mayombe dei o título de A desconstrução da utopia (e a narrativa dos desafectos) em No verso da cicatriz. Mais tarde, melhorei o texto e, um dia, irei publicá-lo em livro. Mas por que é que eu pensei em dar esse título ao meu texto? Bem, é um título ligeiramente longo, mas que traduz duas principais ideias que eu aqui pretendo partilhar com os leitores e com os potenciais leitores, evidentemente. Quer dizer, por um lado, ao ler No verso da cicatriz, ocorreu-me outro livro: Utopia, de Thomas More, onde existe uma ilha inventada que funciona como um lugar fantástico e, acima de tudo, bom. E, num mundo em que estamos tão sedentos de coisas boas, num mundo tão violento, com acidentes, violência e tantas outras peripécias que nos incomodam e comprometem a nossa sanidade mental, pensar na Utopia, de More, é fundamental.
A Ilha da Utopia de More é um lugar justo, solidário, comunitário e de harmonia. É um lugar inventado para incluir a todos. Então as leis funcionam, a justiça funciona, o amor existe, a solidariedade, a amizade e todos os valores que deveriam nortear os seres humanos lá também existem. É um lugar de sonho!
Quando nós lemos No verso da cicatriz, ocorre-nos que o primeiro espaço para a narrativa, apresentado pelo narrador, é Maguaza, algures no Distrito de Moamba, em Maputo. Usado como categoria da narrativa, Maguaza é um espaço ideal. Nós até podemos identificar várias localidades como Maguaza pelo país adentro, mas este que a história nos traz é um lugar ideal. A questão que aqui se coloca é: como é que nós pensamos num plano real, com tantas dificuldades, a partir de um lugar fictício e como é que a ficção, a partir desse exercício, comunica-se connosco? A ficção tem o poder de reinventar a realidade? Como é que a ficção faz com que a realidade ganhe mais sentido? Na verdade, estas são as principais questões que os dois narradores de No verso da cicatriz nos trazem, porque a realidade, às vezes, é tão efémera que nós não a conseguimos compreender. Em No verso da cicatriz temos essa espécie de lugar que nos ajuda a construir mundos, personagens e, assim, instaura-se uma personificação que nos faz olhar para o nosso universo interior. E olhar para o nosso interior não é tão fácil quanto fechar os olhos, porque aqui também buscamos a resposta à pergunta quem nós somos como povo?
Os dois narradores que me referi há pouco são Bernardo Penicela Muhlanga e Maria Helena. Quanto ao estatuto, são narradores autodiegéticos, aqueles que na escola secundária designamos narrador participante. Mas este termo participante não é tão feliz quanto isso porque o narrador, quer integre, quer não integre a história como personagem, é sempre uma entidade participante na narrativa. Logo, o termo autodiegético ajuda-nos a compreender que além deste narrador contar a história, também é protagonista.
Neste livro temos narradores que contam as suas próprias histórias e como é que essas mesmas histórias se vão relacionando com as outras. Há aqui um pouco de invocação do que nós podemos passar a pensar em termos de como a nossa vida e a nossa existência vão-se entrelaçando com os outros. Não existimos sozinhos e os protagonistas de No verso da cicatriz estão constantemente a lembrar-nos disso.
Esta é, logo no princípio, uma história de amor, mas uma história de amor transversal. É uma história de amor às pessoas, às personagens, à literatura, à terra e ao que nós podemos julgar ser nação. A nação aqui é construída e reconstruída através da história de duas personagens.
Em jeito de sinopse, neste livro temos um certo rapaz, Bernardo, que se apaixona por uma rapariga, Maria Helena. Entretanto, há aí um problema delicado. A certa altura, o pai de Maria Helena apercebe-se de que o rapaz é originário de uma determinada etnia e não quer que se relacione com ela. Sendo ele uma das autoridades do lugar, parte para a sede de Maguaza e mente aos seus superiores, dizendo que na sua aldeia havia um testemunha de jeová, Bernardo, numa altura em que o regime do dia, depois da independência de Moçambique, perseguia aqueles devotos. E nós podemos nos perguntar: qual é o problema de ser testemunha de jeová? No romance, é um grave problema. Por isso, a promissora história de amor é, desde cedo, interrompida. Bernardo, que tanto ama Maria Helena, é levado à força de Maguaza e vem parar aqui a Zambézia (eu não sei se já ouviram falar de Carico), depois de ter sido aliciado a abandonar uma fé que não tinha e, depois, passou a ter.
Seja como for, nesse sentido, o romance de Bento Baloi confronta-nos com as seguintes perguntas: quanto custa a nossa fé? Vale a pena abandonarmos as nossas convicções e aquilo em que acreditamos por medo de morrer? Vale a pena desistirmos de tudo o que somos por medo? O romance traz-nos este tipo de confrontação e cada leitor irá responder à pergunta mediante à forma como for a ocorrer a sua própria introspecção.
Este é um livro narrado na primeira pessoa do singular, no presente do indicativo, em três cadernos, em que, a certa altura, captamos o cruzamento entre a história, a pesquisa, a realidade e também a técnica narrativa. Portanto, não se trata apenas de um livro que mexe com a História recente de Moçambique nas suas várias vertentes; não se trata apenas de uma narrativa que inicia em Maguaza, no advento da nossa independência, até 1992, na altura em que termina a guerra dos 16 anos; não é apenas um livro que percorre o país do Sul ao Norte. Conforme disse anteriormente, aqui também há “muita” Província da Zambézia, desconhecida para vários habitantes da cidade, que, eventualmente estão aqui.
Uma dessas passagens que nos leva ao interior da Zambézia, sempre esquecido, ajuda-nos a perceber a relação entre o narrador e as coisas que narra sobre o seu habitat. Diz o seguinte:
Carico. O sol procura esconder-se por entre as montanhas anunciando o fim da tarde e o princípio da noite. Os 30 quilómetros, que agora nos separam da vila de Milange, foram feitos em bagageiras de camiões. Apertadíssimos uns com os outros. Mal cabíamos. O desembarque é uma operação de alívio ao convívio com a catinga do outro. É o fim do suplício de inalar poeira. O nosso aspecto amarelado é disso denunciador.
Carico é uma região encravada num conjunto de serras que fazem parte do sistema montanhoso Chire-Namúli. A própria expressão “Carico significa “dentro da panela”, na língua local, indicando que o local é rodeado de montanhas.
A ideia de estarmos num território dominado por felinos desaparece logo à chegada. Há um enorme grupo de pessoas que nos recebe efusivamente com cânticos e dança, o que constitui uma grande surpresa. É muita gente! Acredito serem as Testemunhas de Jeová para cá enviadas antes de nós (p. 53).
Quem discursa desta maneira é Bernardo Penicela Muhlanga, o retirado à força do seu território, do seu espaço perfeito, da utopia e ideal. Vai parar a Carico, no interior da Zambézia, numa época em que palavras como “centro de reeducação” e “operação e produção” eram recorrentes para alguns moçambicanos. A partir desta passagem que li, conseguimos sentir cheiros, ver imagens e sentir a sensação das personagens. A descrição é feita de tal maneira que nós passamos a compreender, num novo espaço, os receios de Bernardo (mais tarde, de Maria Helena também) e os sentidos do amor. E voltamos às perguntas retóricas do romance: vale a pena sacrificarmo-nos por amor? Ou podemos largar tudo em prol da sobrevivência? Entre a sobrevivência e o amor, o que é o mais importante?
O romance desenrola-se em 17 anos, envolvendo personagens que sofrem, mas que, mesmo numa época de cólera, não desistem de amar. Ainda podemos amar? O que significa amar as pessoas e a terra?
Este é um romance sobre a intolerância religiosa e ideológica, é um romance onde nos encontramos, que nos ensina que podemos fazer da ficção um factor de reconciliação de facto, porque esta palavra reconciliação, em muitos círculos, é muito gasta, muito vazia de sentido e de imaginação. Nesta história podemos pensar em cada termo que nós muitas vezes usamos ao pronunciar palavras como paz e amor. Eu sempre repito a palavra amor porque é isto o que o livro é e que Bento Baloi traz. E esta capacidade de mergulhar dentro das personagens para trazer uma certa sensibilidade faz com que experimentemos o que há mais de dois mil anos Aristóteles designou catarse, esta capacidade de assumir a dor do outro como nossa.
Ao partir desta aceitação da dor do outro, pensamos no mundo real de uma outra forma, de uma forma mais justa, honesta e solidária. Então esta catarse nos purifica e leva-nos de regresso ao passado, não para o corrigir, mas para pensar nesta geografia que cabe na fronteira Rovuma a Maputo e do Índico ao Zumbo. O que significa ser moçambicano também é uma questão presente neste livro, permitindo-nos conhecer as zonas recônditas do nosso país e o espaço, de certa maneira. Isso faz com que o romance de Bento Baloi seja uma narrativa necessária e urgente de ler. É uma narrativa através da qual o autor consegue mergulhar de uma forma profunda na alma humana, buscando as suas virtudes e as suas imperfeições.
Quem quiser passar a conhecer-se melhor, quem desejar fazer um exercício de introspecção até para saber o que significa as palavras humanismo e moçambicanidade e como o país construiu-se ao longo do tempo, tem aqui um bom pretexto. Quem também quiser pensar na literatura e nas formas de narrar uma bela história, deve ler este livro, no qual os discursos dos narradores se complementam.
Se puderem, leiam No verso da cicatriz, porque, assim, serão melhores pessoas, renovadas, purificadas e, se calhar, a interessarem-se mais pela magia das letras. A propósito de letras, este romance conecta-se com outras literaturas, como Madame Bovary, de Gustave Flaubert, Teresa Raquim, de Émile Zola, e O vermelho e o negro, de Stendhal, pela descrição da paisagem, caracterização das personagens e pelo efeito trágico.
Mesmo a terminar esta minha intervenção, que já vai longa, eu quero partilhar duas frases das várias bonitas proferidas pelo narrador de Bento Baloi. A primeira passagem diz o seguinte: “Mas a força da razão jamais sucumbi à razão da força” (p. 56). Há aqui duas palavras-chave: razão e força. O que é superior e o que deve ser superior? É uma frase para pensarmos nas nossas relações, no nosso contexto e na relação entre o tempo e o espaço.
A outra frase diz precisamente o seguinte: “A grandeza dos homens também se mede pela capacidade de reconhecerem os seus erros” (p. 80). Se nós podemos aprender o alfabeto, se podemos aprender a contar, a andar, a relacionar-nos uns com os outros e até a sofrer, nós também podemos aprender a reconhecer os nossos erros, porque nós erramos todos os dias e caímos todos os dias. O que importa é que podemos aprender a aceitar e a corrigir os nossos erros, e, a partir daí, reconciliarmo-nos com os visados dos nossos deslizes. Este romance é mais do que um encontro com a nossa História, é mais do que um encontro com a nossa paisagem e com a nossa geografia, é um encontro com a nossa humanidade.
Se puderem, leiam a história de Bernardo e Maria Helena porque nos ajuda a tornarmo-nos pessoas novas, ainda que tenhamos 20, 50 ou 90 anos e idade. A literatura também tem este poder e esta capacidade.
Obrigado!
*Transcrição da intervenção feita na apresentação do romance No verso da cicatriz, de Bento Baloi, no dia 26 de Agosto, no Salão Nobre do Município de Quelimane.