O teu nome titula este infausto texto. É-me impossível pensar num outro epíteto ao redigir esta evocação. Hoje, como a 2 de Agosto, quando morreste, quando nos morreste, eu queria eximir-me desta tarefa. Há precisamente um ano abrias uma garrafa de champagne e celebravas os meus 50 anos, quando regressei de uma viagem e fui dar-te um abraço. Ainda agora enviei um whatsApp à Silvina com esta imagem. Estamos: tu, o Moisés Jorge e eu. A fotografia está aí e fere até à contundência. Procurei todos os subterfúgios para não o fazer, mas aproxima-se o 21 de Março, o dia dos teus anos, o dia da Poesia, e a tua ausência é ainda mais contundente. Todos os dias me nego a aceitar a dura realidade da tua morte.
Rui Knopfli: “Nunca mais/ nos encontraremos. Jamais. / A morte é isso, é acabar/ simplesmente, não acontecer mais/ jamais. / Nada me auxiliam as lágrimas/ que me salgam a face/ e o muito que tenho blasfemado/ de borco, rente ao teu silêncio gelado. / Esta a lógica prosaica dos factos: / Continuamos a viver, dolorida/ a consciência/ da tua cada vez maior ausência.”
O Knopfli escreveu estes versos dilacerados e dilacerantes para a filha. Eu não sei escrever-te versos. Todos os dias me lembro de ti. Pergunto quase sempre: qual é a razão desta lógica prosaica dos factos? Como continuar a viver com a consciência da tua ausência? Não há dia em que nós, o Moisés Jorge e eu, não choramos em silêncio a tua morte. Sempre que falamos pronunciamos o teu nome. Por vezes, a tua sobrinha Sandra chama por mim – o irmão do tio – e lembra-me essa condição inexpugnável. Sempre que falo com a Silvina falamos das saudades que temos de ti. Acabamos a chorar ambos, sendo que a dor dela não se traduz em nenhuma língua. Com o Moisés falo de ti sempre que estamos os dois e conversamos sobre a urgência de viver. Éramos os três e a fotografia está vazia sem ti. Perdeu conteúdo. Ficou desapossada de significado.
Trinta e tal anos depois de uma amizade indefectível, já eras mais do que um amigo, o meu irmão mais velho. Eu, o teu mais novo. Conhecemo-nos por via da literatura, que queríamos como bandeira das nossas vidas. Tínhamos sonhos e éramos jovens. A cultura era um acto que praticávamos com convicção. A cidadania não era um negócio, mas um imperativo das nossas vidas. A liberdade era o nosso viático. A literatura esse espaço. Discreteávamos sobre tudo. Estávamos nos anos 80. Tu vieras de Cuba e eu de Nacala. A Charrua e a iconoclastia de uma geração – a nossa. Éramos felizes e, provavelmente, não sabíamos.
Tinha contigo muitas cumplicidades. Não ouvirei mais Pablo Milanés contigo – paro e ponho a tocar o Pablo Querido, que me trouxeste um dia de Cuba -, nem me falarás mais de Silvio Rodriguez, da revolução cubana ou de Fidel. Custa-me aceitar essa realidade incontornável – vocábulo que era tão caro! Não irei contigo a Havana. Não estaremos na Macaneta na cúmplice companhia de um cão vadio, enquanto o mar nos suspende de azul naquela imensidão soberana. Não leremos versos um do outro. Não ouvirei o teu riso estridente. Pregaste-nos uma partida e lá do céu deves estar a zombar de nós com aquela tua gargalhada e aquele teu olhar malandro. Ou deves estar a olhar-nos com o teu sorriso mefistofélico.
Foi um poema – “Milagre obstétrico” – que publicaste num dos espaços que eram consagrados à literatura que me chamou a atenção para o teu nome de poeta. Vivíamos, talvez como hoje, tempos sombrios. Dias obsidiantes. A mediania medrava. A incongruência das cidades – um dos teus temas electivos. Tu fazias da cidade a nossa ágora, o teu espaço de liberdade, a metáfora da democracia, que te (nos) concitava.
António Pinto de Abreu: “As lâmpadas da cidade/ fundiram-se todas// e numa das esquinas/ da grande aldeia de cimento/ um latão urbanizado/ pariu um pirilampo…// Glória ao novo ser/ que nasceu ao anoitecer. // O jornal não deu a grande notícia/ – os fotógrafos tinham as máquinas/ aguardando o plano superior. // Contudo/ no velho latão urbanizado/ o pirilampo brinca e chora/ (como alguns meninos) / luzindo com o satírico brilho/ da esvaziada lata de sardinhas/ da “ração de combate”.”
Levaste tempo a publicar. O primeiro livro surgiria no ano 2000. Murmúrio de Acácia, que trazia, no seu ADN, uma espécie de programa poético da tua vida, a tua matriz poética. Havia ali um poeta, na sua matura idade, não era um poeta errante, antes pelo contrário. A tua era já uma poesia vigiada, tinhas uma gramática própria, uma sintaxe e uma dicção de quem estava seguro do seu estro.
O amor será o teu tema primordial. Tu és sobretudo um poeta do amor. A tua palavra, a tua invenção poética, a tua gramática e a tua dicção informam um discurso amoroso. O teu alto canto alicerça-se na tua amada, a escrita sagra-se e consagra-se na celebração do amor. O corpo da mulher inscreve-se, com desvelo e candura, nessa gramática do amor. A sensualidade.
Por outro lado, o poeta que és está atento à realidade social, em constante transformação, às contradições do devir moçambicano cartografadas em poemas onde o sarcasmo é ineludível e cortante. Por vezes, muitas vezes, como prática e como ética daquilo que insistias em apresentar e representar e que era a essência do ser moçambicano. Tu foste sempre um patriota quezilento.
Poeta do amor – disse-o -, mas também da infância – o bairro da Manga testemunha isso -, da tua tribo – o mano Arlindo, da Mãe, da tua musa soberana Silvina, dos teus filhos Edwina e Luan são referenciais importantes -, poeta do quotidiano, poeta da realidade social. Poeta, finalmente, do devir moçambicano. Não só no Murmúrio de Acácia, mas também na Cascata de Sinos ou na Brisa de Luz. Mas também contista de Luar de Nwanzi ou, mais recentemente, memorialista, em Algumas das Memórias que eu ainda Retenho, registo biográfico e uma espécie de inventário da tua brevíssima existência. Inventário poético, evidentemente. Testamento e despedida.
Há mais de três décadas que somos amigos ou mais do que isso: irmãos. Releva desse lapso de tempo o compromisso com a poesia, a vida como uma obra de arte, a tua extrema sensibilidade, a tua ironia auto-complacente. Avultariam outras admiráveis qualidades tuas, como a do economista, mas eu aqui me desendivido delas. Tu és sobretudo um poeta. Atenho-me, por conseguinte, às tuas qualidades literárias. Foi por ali que alicerçámos a nossa amizade, foi por ali onde andámos a cumpliciar ao longo dos anos. Sou um leitor amigo, cúmplice e exultado. Sou o teu mais novo, o irmão mais novo e fazemos gala nisso. Vivemos e cumpliciámos, visitámo-nos amiúde, frequentámo-nos, partilhámos a felicidade desta existência provisória. Fazíamos uma tertúlia entre amigos que tinham a mesma urgência de amar a pátria. Falámos com urgência, procurámos ser diligentes no que fazemos. Une-nos o amor incondicional pela pátria. Pelo presente, pelo passado e pelo futuro. A nossa vida é isso mesmo, um apelo lancinante ao futuro. Um apelo à esperança. Um apelo à pátria. Um apelo desesperado, digo eu agora.
A pátria. A pátria concita-nos. A pátria impele-nos. A pátria instiga-nos. A pátria mobiliza-nos. Temos um amor impenhorável por Moçambique e proclamamo-lo com abundância. Escrevemo-lo nos nossos textos. Esse amor pela vida e pela poesia, esse amor por tudo. Mesmo diante de um copo de vinho e de uma conversa vagabunda, a pátria não se exonera de nós.
Escrevo no presente e não no pretérito, a despeito de o fazer sete meses depois de teres partido. Hoje eu não queria ter escrito este texto. Mas aproxima-se o dia 21 de Março e não vou ouvir-te do outro lado da linha. Esta noite, vais debruçar-te, certamente, sobre o meu ombro enquanto redijo estas palavras para te lembrar e zombarás de mim, onde quer que estejas, com um ruidoso “vai-ta lixar!” e soltarás, por certo, aquela tua prodigiosa gargalhada. Penso em ti, nos teus breves, mas intensos 52 anos, na tua inteligência arguta, na tua sensibilidade, na tua cultura, na tua sageza, tu que eras um dos poucos, dos poucos bons de que a pátria poderia orgulhar-se. Tu que eras o melhor, entre nós. E aquele que praticava uma esperança intransigente. Tu nunca deixaste que nós soçobrássemos perante a urgência do futuro ou diante do desespero. Eras de uma esperança tenaz neste país e no seu destino e isso ajudava a combater a depressão, que por vezes nos atingia, em momentos sombrios. Penso em ti e lembro-me daqueles versos cortantes de “Funeral Blues”, de W.H. Auden: “Parem todos os relógios, desliguem o telefone, / Evitem o latido do cão com um osso suculento, /Silenciem os pianos e com tambores lentos/ Tragam o caixão, deixem que o luto chore”.
Onde estás, nessa galáxia para aonde emigraste, danças agora uma rumba naquele teu estilo irrepetível. Já te excedeste a falar de Cuba. Já bebemos um rum com coca-cola (um cuba libre) e fizemos o escárnio sem complacência da mediocridade. A pátria viajou contigo para esse planeta para onde resolveste emigrar, deixando-me, deixando-nos, inexoravelmente, mais sós e mais pobres. Oiço esta rumba, esta salsa e este mambo. Pablo Milanés e Soledad Bravo cantam agora, neste preciso momento: “mira Soledad como es hermosa la vida!”
Mi hermano, mi buen hermano, mi hermoso hermano: recordo-me daquele abraço à porta de tua casa, aquele abraço de despedida. Sabíamos ambos que ali terminava a nossa aventura comum. Que eu não te ouviria mais, que eu não te veria mais, que não havias de praticar a tua saudosa ironia e a tua ruidosa gargalhada, com as tuas mãos sublinhando a ênfase do que dizias, que não me surpreenderias com as tuas mensagens ou teus gestos. Que não me ligarias mais. Ali chegavas ao fim para mim. Foi demorado aquele abraço. Não te vi mais, não te quis ver naquele ominoso féretro naquele 5 de Agosto. Falei-te, naquele sábado, a cargo dos nossos amigos das nossas tertúlias, que me incumbiram da mais difícil das tarefas e da qual não me pude exonerar: dizer-te adeus em nosso nome, em nome de todos. Fi-lo em nome do Tio Luís, do Magid, do Lourenço, do José Norberto, do Abdul Carimo, do Óscar, do Noa, os companheiros das nossas tertúlias, e desci aquele estrado desamparado. Depois, abraçado ao Moisés Jorge, amparámo-nos da solidão que nos atingira. Abraçados, chorámos ali. Fomos levar-te e acompanhámos-te ao cemitério de Lhanguene. Chorámos outra vez. Ainda hoje choro, ainda hoje te choramos. Agora, tenho de parar. Pablo Milanés canta com os seus amigos belas canções que nos empolgaram estes anos todos. Tenho lágrimas nos olhos que me turvam a escrita. Queria ter falado do dia 21 de Março, dia da Poesia, o teu dia. Não irei ligar-te este ano. Estou, finalmente, resignado ao aforismo grego: “Morrem cedo os que os deuses amam”. Só aqui reside o meu consolo improvável.
Post Scriptum – Queria falar-te da Camila Cabello, uma bela cantora de 21 anos – ela é também de Março! -, nascida em Cojimar, na ilha caribenha, que anda a fazer sucesso com um hit intitulado “Havana” e o disco Camila. Haverias de gostar de ouvi-la e dançarias por certo, como naquela noite em Madrid em que fomos dar a uma discoteca do Sol e não paraste de dançar aquelas rumbas, salsas e mambos da tua juventude na Ilha de Fidel. Camila canta aqui com o rapper Young Thug. Oiço-a, obsessivamente, por ti.