Quando os vivos já não honram os seus mortos, o que resta na humanidade?
É com este questionamento que nos lançamos aos contos de Edmilson Mavie, que devoram as estruturas convencionais, entre o delírio e a realidade, a sanidade e a loucura.
Em “Assalto no Cemitério”, naturalmente, o autor nos conduz a um cenário insólito em que a morte de um empresário permanece cercada por mistério, ganância e decadência moral. O explora a ideia de que nem mesmo os mortos estão imunes às transgressões da sociedade.
O tom que rasgou o silêncio sepulcral dado por ladrões, gritando “mãos ao alto”, acentua a diferença entre a solenidade do momento e a banalidade do acto criminoso. Mavie brinca com essa incongruência para enfatizar a falta de limites na sociedade actual.
A escolha de um fotojornalista como narrador reforça a crítica sobre a sociedade contemporânea, onde testemunhamos o surreal, mas frequentemente permanecemos espectadores passivos. Este distanciamento do narrador pode sugerir que, muitas vezes, nos acostumamos com a violência e a degradação, tornando-nos insensíveis ao que antes seria impensável.
Um dos momentos mais simbólicos ocorre quando uma bala se aloja na Bíblia do padre, criando um confronto directo entre o mal e o bem, a violência e a fé. Este cenário pode ser visto como um sinal de que, apesar da violência que permeia até os rituais sagrados, ainda há uma resistência espiritual, representada pela Bíblia.
A presença do crime em um momento tão íntimo como o luto, levanta questões sobre o desespero de uma sociedade que, talvez pela falta de alternativas, vê até o funeral como uma oportunidade para roubar.
Nesse mesmo contexto nos recordamos da situação do jovem que vandalizou jazigos no Cemitério de Lhanguene, em Maputo, realmente, uma ocorrência que ultrapassa o mero delito e se transforma em abandono social.
Como pode um homem roubar um caixão de outro homem, deixando um sangue negro e viscoso deslizando nos pés dos que lá se encontravam? Por um lado, essa abordagem propõe uma análise às condições que levam os indivíduos a extremos, onde o respeito e a tradição são facilmente sacrificados pela sobrevivência.
Por outro lado, a resposta dos presentes no assalto é de espanto, ao mesmo tempo há uma aceitação quase resignada. Este detalhe reforça a ideia de que o medo e a violência foram normalizados a tal ponto que até em momentos de luto as pessoas esperam o inesperado.
Esse sentimento de impotência colectiva evidencia uma sociedade paralisada pela insegurança, onde o crime e o medo são elementos constantes.
Edmilson Mavie adopta uma linguagem concisa e directa, imbuída de sentidos que se desdobram na mente do leitor. Ele trabalha com o essencial, criando diálogos e situações que colocam o leitor em contacto imediato com os dilemas e críticas que emergem de seus textos.
No entanto, apesar dos inúmeros méritos presentes no texto, a ausência de um glossário revela-se uma limitação para alguns.
A obra, que se enriquece com expressões em Changana — língua que carrega na essência cultural e o ritmo das falas dos personagens, por vezes apresenta passagens cujo entendimento pode ser desafiante para quem não possui familiaridade com esse idioma.
Um exemplo disso é a inserção da expressão “ Maurício wa hlanya sabe?”, para indicar que Maurício está “maluco” ou “fora de si”.
A inclusão de um glossário ao final do texto seria uma solução elegante para preservar a integridade cultural da obra enquanto amplia o seu alcance e acessibilidade para um público mais diverso.
Indubitavelmente, o autor constrói, nos capítulos “O Prognóstico” e “A Fatalidade”, uma narrativa que se desenrola como um espelho fragmentado, reflectindo a fragilidade humana e o peso esmagador das instituições que, ao invés de proteger, consomem os mais vulneráveis.
Em “O Prognóstico”, a história de Casimiro e a sua filha é um retrato pungente da impotência humana diante da doença. A figura do pai, desesperado, agarra-se à medicina como um náufrago em meio à tempestade, mas encontra apenas frieza e burocracia.
A frase da doutora – “A sua filha está a piorar, Sr. Casimiro. Nós quase a perdemos ontem” – reverbera como o soar de um sino fúnebre, transformando o diagnóstico em uma sentença velada. Quando o termo “autópsia” surge como resposta final, a medicina não apenas abdica da vida, no entanto revela a cruel ironia de um sistema que prioriza o corpo morto ao invés do ser vivo. Aqui, a criança, reduzida a um “quase”, é a marca de uma vida constantemente à margem, jamais plena, jamais salva.
Em contrapartida, “A Fatalidade” emana na tragédia social, onde a pobreza e a desesperança se transformam em terreno fértil para a violência. A figura de Dona Gineta, perseguindo o filho João pelas ruas, manifesta o colapso do núcleo familiar, exposto como espetáculo público em uma tentativa desesperada de controlo.
A chegada do polícia, impiedoso, transfigura o castigo em tragédia: um disparo ceifa a juventude de João, o gesto final dele, entregando o dinheiro à mãe, é uma representação amarga da inversão de papéis, ou seja, o filho, já derrotado, busca redimir-se diante de uma autoridade materna que, tal como a sociedade, falhou em protegê-lo.
Ambas as histórias convergem na denúncia de instituições que deveriam zelar pela vida, porém se transformam em agentes de morte.
Edmilson Mavie pinta, em cada página, um panorama onde a vida é um fio tênue, sempre sob domínio de forças incontroláveis. Mas, Quem é o Homem que Comeu o Hospital?
O capítulo que porta o mesmo título da obra, abre-se com a angústia de Lancelina, que acredita estar sendo perseguida por fantasmas. Sua paranoia, no entanto, não é apenas uma projecção de sua mente, todavia um produto de um sistema que falha em acolhê-la. O diálogo entre ela e o médico é repleto de tensão, misturando cumplicidade e hostilidade, como se ambos os personagens estivessem presos em um jogo de poder onde nenhum dos lados realmente compreende o outro. Em meio a isso, surgem as palavras de Suleiman Cassamo em “O regresso do morto”, “Nunca ninguém desejou boas-vindas a fantasmas”.
A figura de Encallani, mencionada de maneira ambígua por Lancelina, é emblemática nesse jogo entre realidade e ilusão. Quem é Encallani? Seria uma pessoa, uma lembrança distorcida ou simplesmente um ícone dos muitos traumas e das vozes que a assombram?
O conto deixa essa pergunta em aberto, aumentando o efeito de desconforto e desconstruindo a lógica tradicional de um enredo que nos ofereceria respostas claras. Essa ambiguidade nos força a encarar a perspectiva dela como legítima, ainda que ininteligível para o olhar clínico do médico, que a vê apenas como um “caso.”
Mavie tece uma narrativa em que a linguagem do corpo e da sexualidade se mesclam com os elementos de sanidade e loucura. Em um gesto ousado a paciência usa sua nudez e sensualidade não apenas como um meio de sedução, porém como uma forma de resistência e de expressão de sua própria autonomia.
A sua dança, os toques sugestivos, a exposição do corpo, tudo isso é uma tentativa desesperada de afirmar a sua existência e quebrar a invisibilidade imposta pelo ambiente hospitalar. Portanto, “O homem que comeu o hospital” vai além de uma história de loucura, é um desabafo contra um sistema que devora, ao invés de acolher; que observa, ao invés de ouvir.
Assim, o hospital torna-se um organismo que consome aqueles que deveria salvar, e Lancelina, mesmo em sua loucura, emerge como a voz que desafia essa ordem opressora.