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A urgência de sarar as feridas da história: No verso da cicatriz, por Bento Baloi.

Por: Noemi Alfieri 

Investigadora/ Universidade Nova de Lisboa

 

No verso da cicatriz é o segundo romance do jornalista moçambicano Bento Baloi, editado em Portugal pela Ideia Fixa, do grupo Alêteia Editores, e em Moçambique pela Índico (ambos em 2021). O livro aborda os acontecimentos da história de Moçambique entre 1974 e 1992, ou seja, no intervalo de tempo que decorreu entre a assinatura do Acordo de Lusaka entre Portugal e a FRELIMO e o Acordo de Roma, que pôs fim à Guerra Civil Moçambicana, eclodida em 1977. Mencionadas explicitamente, essas datas ganham valor não só em função do marco que deixaram na vida política do país,mas também – e sobretudo – pelo reflexo e pelas consequências que tiveram na vida da população, na sua percepção do país, na sua forma de imaginar e viver a relação com o território e com as convulsões e mudanças que Moçambique viveu ao longo dos quase 20 anos que a narração aborda. A relação de Bento Baloi com a escrita vem de longe, tendo-se ele dedicado à redacção de peças de teatro transmitidas em emissões da Rádio Moçambique,de contos e poemas publicados em jornais e revistas, e da carreira jornalística que vem desenvolvendo há cerca de trinta anos. É este o caso em que podemos, sem sombra de dúvida, afirmar que muito temos do escritor na obra, como ele próprio esclarece, aliás, na “Nota final” que encerra o volume da edição portuguesa. A escolha do enredo tem, portanto, razões históricas, mas tenciona ao mesmo tempo homenagear aquela parte da história familiar que se funde e entrelaça com a colectiva.

Dividida em três livros (A ferida, O sangue e A cicatriz), a narração percorre o país, desde Maguaza (distrito da Moamba, província de Maputo) até Carico, passando por João Belo (hoje Xai-Xai), Inhambane, Quelimane e o Tetechegando, até a fronteira com o Malawi. A história de Bernardo Penicela Muhlanga e de Maria Helena, ambos originários de Maguaza, é assim o fio condutor de uma ficção que denota uma preocupação com a fé e com os acontecimentos à volta da comunidade das Testemunhas de Jeová em Moçambique a partir de meados do Século XX, mas que não se reduz à narração desta história. A violência do colonialismo antes e da guerra civil depois, as ingerências estrangeiras em Moçambique, os temas dorefúgio e das fronteiras, mas também do amor, são longamente abordados, numa narração na primeira pessoa e frequentemente no tempo presente, com um recurso estilístico que cola o leitor às páginas e o traz para o decorrer dos acontecimentos, aproximando-o tanto da vivência das personagens, como da crueza dos eventos

 A partir das primeiras páginas, fica evidente a pressão à qual o país esteve sujeito imediatamente após a Independência, que se refletiu, entre outras coisas, nos receios e na dificuldade geral da população em entender a escolha da comunidade Jeová em recusar qualquer alinhamento com a política, escolha essa que frequentemente foi encarada com desconfiança por parte de quem muito lutou contra um inimigo comum que muito sofrimento causou no povo moçambicano. Como o autorexplicita nas primeiras páginas:

“Não há dúvidas que as novas autoridades tenham alguns temores. Temem a reedição da tentativa de se desvirtuar a independência de Moçambique através dos acontecimentos de 7 de Setembro e 21 de Outubro que culminaram com a morte de centenas de pessoas nas ruas de Lourenço Marques. Temem a incursão de agentes da antiga PIDE-DGS que continuam a ter laços fortes com interesses coloniais em Moçambique. Temem a reacção de todas as forças, nacionais e estrangeiras, contrárias à independência de Moçambique e que podem pôr em causa a sobrevivência do próprio Estado.” (p. 38)

Neste contexto, quando o protagonista Bernardo é falsamente denunciado como sendo membro dos Jeovás pelo pai de Maria Helena, Secretário da aldeia e contrário à relação entre os dois, as longas viagens do jovem nosmachimbombos em direção aos Campos de Reeducação da zona norte do país são acompanhadas por certo sentimento de incredulidade. Consciente de que caiu numaarmadilha, Bernardo descobre o país ao mesmo tempo que descobre a violência e as contradições que são o preâmbulo da laceração que acontecerá nos anos seguintes, a ferida que dá o nome à primeira parte que constitui o livro.

Deparamo-nos, ao mesmo tempo, com a solidariedade e a determinação de uma comunidade outrora perseguida pelas autoridades coloniais pela ameaça que, segundo estas, constituíra para a chamada “unidade nacional portuguesa” e para a religião católica, outro pilar da doutrina salazarista. Desta forma, a mesma comunidade acusada em época colonial de predicar a “liberdade para todos” (posição, essa, considerada demasiado próxima do comunismo) foi, na fase de transição que caracterizou a altura imediatamente posterior à extinção dessa mesmaordem colonial, isolada por causa da sua neutralidade. OsCentros de Reeducação para os quais as Testemunhas eram enviadas não foram, contudo, os únicos existentes naquela época no país. O romance aborda também a questão da reeducação dos chamados marginais, ou “improdutivos”, civis desprovidos de documentos que foram na época enviados para a norte do país, com o intuito de favorecer o povoamento das zonas mais remotas e com densidade populacional baixa ou quase nula. Estes também aparecem na narração, representando um universo distinto do das comunidades das Testemunhas, a este acomunado, porém, pela coerção e pelo desespero gerado pelo deslocamento e pelas duras condições da reinstalação, ganha a golpes de machado cortando o denso capim.

 A fronteira, porém, não é só a fronteira interna, nem selimita à da linha Ressano-Garcia que garante a ligação entre Maputo e a África do Sul. Envolve, também, a fronteira com o Malawi, outrora transposta pelas comunidades de Testemunhas que se instalaram na zona de Carico onde, a partir de 1976, aldeias de malawianos e moçambicanos formaram-se sob a vigilância das forças militares e dedicando-se ao trabalho agrícola nasmachambas. Assim, a fronteira é transposta pelos civis das aldeias durante as fugas dos ataques de guerrilha depois da eclosão da guerra civil: é nesta altura que se aborda, após a questão das torturas, das violências contra os civis e das chacinas, a questão do refúgio, mas também da ingerência estrangeira na vida política do país e na precariedade e insuficiência do sistema de ajuda às populações por parte da comunidade internacional. Transposta a fronteira com o Malawi, alguns entre os maiores campos de refugiadosmoçambicanos, como o de Mulanji, instituídos por aquelegoverno com a colaboração das Nações Unidas e da Cruz Vermelha, representam mais uma vez um ponto de passagem precária, longe de serem um porto de abrigo para as populações que fogem dos saques e das matanças nas aldeias. Populações, essas, que enfrentam o risco de minas nas matas que separam os dois países. A coerção política e o doutrinamento, são presentes, tal como a sensação de invisibilidade que acompanha as deslocações:

“O cortejo arranca para uma longa viagem que atravessa Malawi ao meio. Nas vilas e aldeolas por onde a coluna passa, há sempre vendedores ambulantes que se desinteressam imediatamente assim que descobrem a natureza dos passageiros: refugees. Como quem diz «nem têm onde cair mortos».” (p. 202)

A  hipocrisia do apoio internacional irrompe tanto na denúncia das condições dos campos, da sua arbitrariedade e submissão a interesses políticos, como na insensibilidade das missões humanitárias e académicas, interessadas ao estudo de objectos e da cultura moçambicana numa lógica extractivista, que chega a ser isenta de sensibilidade e empatia para com a situação extrema que a populaçãoenfrenta. A fronteira é, assim, precária, representada por uma estrada de terra batida que só é transponível poralguns, e cuja travessia lembra simbolicamente a fronteira entre o tempo antes e depois da eclosão da guerra. Da mesma forma, as pessoas e as suas vivências convertem-se em testemunhas vivas da divisão. Como narra Maria Helena, uma das protagonistas:

“O velhote vira-nos as costas e segue o seu caminho. Volta ao trilho que separa os dois países. É como se ele próprio fosse a fronteira. A perna e o braço do lado direito estão no Malawi acomodados num campo de refugiados qualquer vivendo em tendas das NaçõesUnidas e alimentando-se de donativos quando não são desviados. A perna, o braço, o olho esquerdo e sobretudo o coração estão em Moçambique vigiando uma fortuna de terras que viraram mato denso cheio de minas. Ele caminha em passo firme e lento até desaparecer com a estrada na linha do horizonte.” (p.209)

A figura de Maria Helena, tal como a de Sofia e Nélson Chiláule com os quais tanto o percurso dela como o de Bernardo se entrecruzam, faz de contraponto à violência e traz para o campo a ideia de solidariedade em toda a sua complexidade. Determinada a viver a sua vida com o homem que ama, o desespero causado pelas condições do país e pela separação não impede à Maria, nem às outras figuras femininas do romance como a sua mãe, Sofia e Zuleica, de serem resolutas e tenazes e de constituir umponto firme para comunidade e para os seus homens. É a sua força que faz com que os homens continuem a resistir imaginando o futuro que elas representam e, diríamos, não é um mero acaso o facto de a parte do livro em que o seu ponto de vista é mais presente ser “O sangue”. As mulheres na guerra são despidas não só dos seus pertences, mas violadas na sua intimidade, os alvos mais fáceis da crueza e dureza do conflito. Elas, desde as mais novas até às mamanas, vivenciam na sua pele a violência sem exercê-la, a guerra sem pegar nas armas, contrariando e contrastando, contudo, as decisões dos homens quando determinadas a escolher o seu rumo.

A esperança e a determinação do povo moçambicano,constante durante e depois da época colonial reflete-se nas palavras de Nélson, que fazem parte da primeira parte do livro, mas que poderiam, igualmente, integrar a última, no horizonte que parece ser mais uns dos fios condutor da narração:

“Mas os homens da minha terra sempre tiveram um horizonte. No seu submundo, redes aconteceram, conexões solidificaram-se, sangue derramou-se e a subversão triunfou. Os homens da minha terra voltaram a pisar com firmeza a sua própria terra, o seu próprio chão, e voltaram a respirar o perfume das flores da vida.” (p. 51)

São estas conexões, diz-nos o romance, que permitem que a ferida sare numa cicatriz. Não será essa a solução que Bento Baloi propõe para o florescimento do país, para que todos os moçambicanos possam respirar a vida plenamente?

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