Na história bíblica, Pôncio Pilatos, governador romano da Judeia, quando pressionado para decidir sobre a crucificação de Cristo, lavou as mãos diante da multidão, dizendo-se inocente do sangue do justo. Esse gesto atravessou séculos como símbolo da covardia travestida de neutralidade, da renúncia à responsabilidade moral. Desde ai, dos tempos bíblicos, Pilatos ficou marcado na história como aquele que, diante da verdade e da justiça, lavou as mãos e deixou o povo decidir o destino de Cristo. Não assumiu responsabilidade, não tomou decisão corajosa; preferiu a neutralidade cúmplice. Daí nasce o que podemos chamar de Síndrome de Pilatos ou Pilatismo: a atitude de quem sabe o que deve ser feito, mas escolhe lavar as mãos para não se comprometer. Eis a essência do Pilatismo: a recusa de assumir as consequências das decisões, preferindo o silêncio ou a omissão diante da injustiça.
Historicamente, esse comportamento repetiu-se de diversas formas: reis que deixavam o povo à fome, mas viviam em banquetes; académicos que escreviam tratados sobre liberdade, mas nunca se levantaram contra a opressão; líderes que se diziam defensores da pátria, mas na hora da verdade venderam-na a interesses estrangeiros. Filósofos como Marx já dizia que “o Estado moderno não passa de um comitê de negócios da burguesia”. Fanon advertia que as elites pós-coloniais preferem a comodidade da retórica a enfrentar as contradições estruturais. Amílcar Cabral lembrava: “as armas mais eficazes do inimigo são as nossas próprias fraquezas”. O pilatismo é exactamente isso: a fraqueza transformada em hábito, a renúncia erigida em sistema.
Na modernidade africana — e em particular em Moçambique — o Pilatismo tornou-se hábito político e social. Governos lavam as mãos diante da pobreza, elites intelectuais lavam as mãos diante da opressão, e o povo, por cansaço ou medo, aprende a reproduzir a mesma omissão. O Pilatismo é, portanto, uma doença colectiva da consciência.
- O Pilatismo Acadêmico
Nossas universidades estão cheias de “professores-doutores” que produzem teses que ninguém lê e discursos herméticos que nada mudam. Quando se trata de enfrentar a miséria, a violência ou a corrupção, a maioria prefere recitar teorias estrangeiras. Bourdieu já dizia que o campo acadêmico muitas vezes serve para autopreservação e não para transformação. Gramsci falava dos “intelectuais orgânicos” — mas em Moçambique temos intelectuais burocráticos, que falam de transformação em congressos, mas se calam diante das injustiças. É o pilatismo académico: saber muito, mas calar-se quando o saber precisa virar acção.
Os chamados professores, doutores e académicos de prestígio, quando confrontados com problemas estruturais do país — corrupção, violência, fraudes eleitorais — recorrem a um vocabulário enfeitado, “emblemágico”, que pouco ou nada transforma. Falam em “resiliência democrática”, em “desafios conjunturais”, mas na prática nada se move. A academia, que deveria ser farol crítico e motor de mudança, muitas vezes se torna cúmplice pela omissão. Paulo Freire alertava: “A neutralidade é impossível. Quem se diz neutro já escolheu o lado do opressor.”
III. O Pilatismo Político.
Os partidos políticos multiplicam-se em Moçambique como igrejas de esquina: cada um com a sua bandeira, mas poucos com ideologia clara. Aqui, a política tornou-se palco onde partidos e dirigentes praticam pilatismo todos os dias. Prometem servir o povo, mas no fundo, exigem quotas, reproduzem clientelismos e procuram apenas ocupar espaço no banquete do poder. Fala-se em democracia, mas as decisões são tomadas em salas fechadas, em negociações de elites. Fala-se em povo, mas os problemas do povo só servem de slogan em campanhas. Quando há denúncias de corrupção, todos lavam as mãos: “não é comigo”, “é assunto da justiça”. O resultado? Um sistema de anacronismo social, onde a política deixou de ser representação da coletividade e tornou-se apenas sobrevivência individual.
Maquiavel já avisava: “A política não tem relação com a moral.” E, de fato, vemos líderes que falam de ética em público, mas em privado conspiram para manter privilégios. Pilatos sorri neles. O contrato social em Marx já era considerado uma utopia — e aqui é farsa.
Cada partido que nasce promete ser “a alternativa”, mas no fundo se transforma em ONG eleitoral, dependente de quotas, doações externas ou patrocínios obscuros. Pilatismo político é isso: vestir a bandeira para esconder a ausência de ideologia clara.
- O Pilatismo Jornalístico.
O jornalismo, em vez de fiscalizar o poder, muitas vezes prefere a corrida da fofoca,
publicando rumores não verificados. Casos recentes — como a falsa notícia da morte de figuras públicas — revelam o jornalismo predatório, que alimenta o imediatismo e a desinformação. Ortega y Gasset já denunciava: “O imbecil coletivo lança foguetes antes da festa.” O jornalismo que se rende ao sensacionalismo contribui para o Pilatismo, pois lava as mãos diante da missão de informar com rigor. A imprensa lava as mãos: “nós só noticiamos, não fazemos justiça”. Mas como dizia Kapuściński, o jornalista não pode ser neutro diante do sofrimento humano. Neutralidade aqui é pilatismo.
- O Pilatismo Religioso.
As igrejas em Moçambique — católicas, evangélicas, pentecostais — muitas vezes
reproduzem o Pilatismo ao prometer o céu enquanto ignoram as injustiças na terra.
Pastores e padres enriquecem, enquanto fiéis empobrecem. A teologia da prosperidade transforma a fé em mercado. Marx, em sua Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, já definira: “A religião é o ópio do povo.” E no nosso contexto, é também um anestésico social.
Ainda la nas igrejas pregam a salvação, mas muitas vivem da exploração da miséria espiritual e material. Pastores lavam as mãos diante da corrupção, do desemprego, da guerra — “é vontade de Deus”. Enquanto Cristo expulsava os vendilhões do templo, hoje vemos líderes religiosos a negociar lugares no Parlamento. A fé vira comércio e o silêncio cúmplice se mascara de oração. Isso é pilatismo religioso: abençoar a injustiça e chamar-lhe destino.
- Pilatismo das ONGs.
As ONGs entram nos cenários de guerra, fome ou desespero como se fossem salvadoras. Distribuem mantas, arroz e slogans. Mas no fundo, muitas vivem de prolongar o sofrimento — pois sem desgraça não há financiamento. Fanon já denunciava a burguesia nacional que, em vez de libertar, se ajoelha às potências estrangeiras. Muitas ONGs funcionam como “lavanderias de consciência” do Ocidente. É pilatismo humanitário: fingir ajudar para manter a dependência.
VII. Pilatismo dos Movimentos e Associações.
Quantas associações de jovens, de mulheres, de trabalhadores existem? Muitas. Mas quantas realmente transformam? Poucas. Há movimentos que aparecem só em época de projectos financiados. Há líderes associativos que usam a causa como trampolim para cargos políticos. Quando a base clama, eles lavam as mãos: “não temos meios”, “é o governo que decide”. Esse pilatismo associativo mata a confiança social e deixa o povo órfão de representatividade.
VIII. O Pilatismo Popular.
Não apenas líderes e intelectuais, mas também o povo aprende a lavar as mãos: “Esse problema não é meu, é deles.” Mas como dizia Rousseau: “O povo engana-se, mas nunca corrompe-se.” A contradição é que hoje o povo já se corrompe pela passividade. O povo, cansado, também cai no pilatismo: Reclamam nos mercados, nos chapas, nas filas, mas calam-se na hora do voto. Dizem “nada vai mudar”, e assim confirmam a vitória do opressor. Cada um lava as mãos: “o problema não é meu”. Como dizia Marx: “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Mas se o povo lava as mãos, ninguém fará por ele. Cada povo merece o líder que tem — não porque Deus escolheu assim, mas porque a omissão coletiva permite que o pior se imponha.
- Pilatismo Cultural e Artístico.
Mesmo a cultura sofre: Muitos artistas falam em “denúncia social”, mas só até onde não compromete o patrocínio. Prefere-se o espetáculo vazio em vez da arte que incomoda. O teatro virou entretenimento, não consciência. A arte, que deveria ser faca afiada contra a injustiça, muitas vezes é reduzida a selfie e performance vazia. Isso também é pilatismo.
Com isso, o pilatismo é a doença de uma sociedade que se acostumou a delegar responsabilidade. É mais fácil lavar as mãos do que sujar-se na luta. Mas cada vez que um líder, um acadêmico, um padre, um jornalista, uma ONG, um artista ou um cidadão comum lava as mãos, alguém paga com sangue, fome ou silêncio. A síndrome de Pilatos é a epidemia do nosso tempo. Só se rompe quando alguém decide não lavar as mãos, mas sujá-las — não de covardia, mas de coragem.
Corrupção institucionalizada: todos sabem, poucos denunciam; quem denuncia é silenciado. Eleições contestadas: os relatórios se acumulam, mas nada se faz; Pilatos lavou as mãos. Pobreza rural: discursos acadêmicos, programas governamentais de fachada, ONGs que mais beneficiam a si próprias. Juventude desempregada: discursos sobre “empreendedorismo”, mas nenhum plano estrutural; apenas slogans. O Pilatismo é a doença do nosso tempo. Uma sociedade que não assume responsabilidade pela sua história é condenada a repeti-la. É preciso denunciar, escrever, falar e agir, mesmo que doa, mesmo que custe amizades. Porque lavar as mãos é perpetuar o crime. Porque calar-se é ser cúmplice.
A luta contra o Pilatismo não é contra um homem, um partido ou uma igreja — é contra a mentalidade de omissão que mata mais do que a bala. Quem se cala diante da injustiça já escolheu o lado do opressor. O Pilatismo é o nosso pecado colectivo. A história nos julgará não pelo que sofremos, mas pelo que deixamos de fazer. Se Pilatos lavou as mãos, nós não podemos. Pois cada vez que o silêncio vence, o futuro morre um pouco mais.