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A ressurreição das memórias que se seguiram à independência no panorama musical nacional 

“Navegar é preciso, viver não é preciso”. 

Frase emprestada por Fernando Pessoa ao general Pompeu. 

 

Era para ter sido um final de quinta-feira normal e igual a tantas outras que animam culturalmente a nossa cidade capital, até que Aurélio Ginja convidou-me a sair, para segundo ele, colocar as agendas culturais em dia, aceitei o convite e acabamos por escolher um cantinho no centro da cidade, com alguma inclinação para a gastronomia portuguesa e moçambicana, já que o chouriço, a broa e o frango a passarinho que ali é servido é de agradável degustação para serenar a mente e deixar-se levar pela fluidez do “papo da malta”.

Quando ali chegamos, deparamo-nos, surpreendentemente, com Xixel Langa e Elcides Carlos afinando os seus instrumentos para animar a noite que se apresentava meio chuvosa e agradável para culturar o amor e o abraço do encontro com Moçambique.  

Ao ver Chido Tomás chegar naquele lugar, Ginja que outrora teria me apresentado Chico António (em memória) naquela noite mágica em que Sara Laisse, por sinal, colega de escola de Aurélio Ginja, lançou _Moçambique Margem Sul_, em voz baixa e com corpo inclinado para o meu lado direito sussurrou, aquele ali em frente com a Xixel é o grande baixista moçambicano e integrou, em tempos, a banda Alambique, foi um pouco depois da independência e nessa altura eles cantaram uma música que convida sempre a fazer a ponte com um grande músico cubano, o Pablo Milanês, com Título Yolanda, e que em algum momento diz: “Esto no puede ser no más que una canción; Quisiera fuera una declaración de amor; Romántica sin reparar en formas tales; Que ponga un freno a lo que siento ahora a raudales_” a mesma foi escrita pelo maior poeta Cubano, Nicolás Guillén. Ah, lembrei-me Rudêncio, a música tem como título A Lirandzo, e tenho em memória que Hortêncio Langa chegou a contá-la com Maria João, a maior referência do Jazz Português, e olha que por feliz coincidência, ela nasceu em Moçambique. Enquanto o Ginja falava eu discutia comigo mesmo, não sabia se parava e registava, ou me deixava viajar nessa aula e correr o risco de perder algumas notas dessa viagem por Moçambique musical no pós-independência. A  verdade é que fiquei pelas duas e lá o show começou. 

As quintas, a cidade acorda, e desta vez, bateu a porta a mescla da voz da Xixel Langa e os chuviscos que se perdiam no dedilhar de Elcides Carlos no coração da cidade, uma espécie de namoro existencial, temperado a moda moçambicana para celebrar os vestígios de um tempo que a todos abraça na melodia dos grandes compositores da música moçambicana. 

Abraçou-me a saudade ao ouvir _Bossa Nova_, e não tardou, confidenciou-me novamente, Aurélio Ginja, que a seguir a Independência, Hortêncio Langa, Arão Litsuri, Childo Tomás, Adérito Gomati e Celso Paco, através da Banda Alambique, misturaram os ritmos da Bossa Nova e os elementos do Jazz com a nossa marrabenta, tendo, na época, marcado a revolução da música moçambicana. Daí a facilidade com a qual Xixel Langa navega nesses ritmos, uma vez que bebera da fonte desde a tenra idade e foi com o tempo decantando, ao seu estilo, a música que a veste. 

O ponto mais alto da noite apareceu quando, a convite da Xixel Langa, Chido Tomás desfez-se da cadeira e dos amigos com os quais conversava para junto da Xixel interpretarem “A Lirandzo”, pegou com delicadeza a viola baixo e como quem reajusta o cinto da calça ou penteia o cabelo e faz a barba antes de sair para o encontro da sua vida, a ajustou ao seu corpo e devolveu-nos a década 80 num tocar gingado de qualidade superior que nos convidou a navegar na música feita em Moçambique. De coração maravilhado, transformado num final de quinta-feira que parecia norma em Poesia, música, conversa. “Uma tríade sensacional. Emoldurada pela música cósmica da chuva”. Eu, simples aprendiz, que nunca tivera a oportunidade de viajar com a Xixel a Solo em sua música, guardava memórias da celebração do Massone, álbum de Carlos Gove, na qual ela participa, acabei por conhecer uma Xixel extraordinária, amiga da música no tempo, com marcas da sua passagem por Cape Town (uma das cidades da cultura africana) e do “bebedouro” sempre cheio de arte que foi a sua casa.

 

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