Por: Domingos Mucambe
“Por tão amplamente que eu meneie a bandeira branca, por tanto que eu suplique um cessar-fogo, o quarto cavaleiro não me vem salvar” – Dulcineia das máculas (In Sem título 1, Done-se / revista literArte, 2024)
A existência, usando das mentes de Lakoff e Johnson, é um campo metafórico. Portanto, em mares que não expressam solubilidade, mas uma (in)certa volubilidade de metáforas, estagna-se, em concordâncias significantes, com a ideia de que nela, a existência, tudo é entrópico. Pego em empréstimo esse termo da física quântica, que é uma medida da desordem ou aleatoriedade em um sistema. Parece-me um tanto poético e científico, em simultâneo. E ela é, no final, isso: tudo, parece, tende ao incessante caos.
É um estado anímico de caos, turbulência ou motim, com pinceladas carregadas de fatalidade, que cresce em mim, quando ponho os olhos no quadro de Marcos P’fuka, intitulado “A pomba não pousou”. O óleo sobre tela, nas suas dimensões 100 x 75 cm, traz, em nós, esse discurso em cores de violência e destruição: esperança estilhaçada, desespero espalhado, e, acima de tudo, um sentido de paz que está em fragmentos pelos ares, e esvaece ainda no casamento com o terno firmamento.
Vermelho e preto: o prelúdio da ruína. O pano de fundo da imagem aliado ao vermelho vão além de cores convencionais. Esse além é o recesso dos artistas, onde, com o seu pincel, carrega-nos acima das convenções ordinárias, quando nos coloca o fundo preto como simbolização de incertezas, destruição e falta de perspectiva ou horizontes. O vermelho, aqui sinónimo de preto no simbolizar do cessar da crença num futuro cada vez mais sombrio, lembra-nos a violência, morte e sofrimento, ou tudo num sentimento profundo e confundido.
O quadro brilha pelo contraste. Um serviço mínimo, quanto às cores. Apenas preto, vermelho, branco, azul e dourado, que nos oferecem uma simbologia profunda sobre a actual condição humana, ou do moçambicano, em particular, que vive em um contexto de instabilidade mental, financeira, cultural e até política, em uma palavra, um caos existencial.
O branco é mesmo sugestivo, e aliado a penas distribuídas pela pintura, só lhe resta ter ares de paz. O que me ocorre, é que não se trata de distribuição das penas, mas de um estilhaçar violento e sangrento delas. “A pomba não pousou”, o que, na verdade, significa a paz [é que] não pousou, aliás chegou. Fala-nos da paz, mas não nos apresenta um pombo, apenas estilhaços e fragmentos do mesmo, penas e sangue, jorrando, gota à gota, até o findar da ave anunciadora de paz. Também nos retrata a paz como algo ainda por chegar, ou algo oferecido por algo ou alguém, talvez, se tenha a paz como algo sobrenatural, em que é consequência de forças que estão além do poderio humano.
Os desvarios, que nascem nas várias variáveis incontroláveis do existir, minam o florescimento e a manutenção da paz, então a humanidade revisita-se nesse quadro quando se coloca patente, não a paz, mas os seus estilhaços em formas de penas. Essa imagem só nos retrata e lembra confusão, no geral, de tudo e sobre o mundo. Fica nas nossas memórias um cenário tumultuoso, consequência de um estrondo, um conflito, ou um acidente violento, um descarrilar da vida que coloca todos os sentidos atrapalhados, tudo de pernas para o ar, e um cenário “terrorístico” inefável, que só uma paleta de cores, pincel e imaginação podem expressar.
Esses desvarios impossibilitaram, como bem o sabem, o pouso do quarto cavaleiro. Pelo contrário, ele foi estilhaçado ainda no ar, ainda sonhando com o poso, ainda sendo um promessa de um futuro banhado de serenidade e beatitude. Talvez, esse fragmentar da pomba signifique que a paz é sempre uma eterna promessa futurísticas, mas, como diz um personagem em “Mar me quer”, de Mia Couto, “o futuro é um tempo que, existindo, nunca chega a haver”. Por aqui toda paciência que nos “mingua” desvanece em pingos desengonçados nesse paradoxo abismal e tão actual. Contudo, com essa paleta de cores que cheira à destruição, caos e violência, esse presente, infelizmente, não nos “suficienta”, pelo contrário, desfola-nos (expressão usada pela minha mãe quando se refere a tirar pele duma galinha, no lugar de depenar, um processo violento) por dentro.
Além disso, talvez sussurra-nos bem baixinho o que seria um tormento para o Homem: ela é como felicidade, qualquer coisa intimida-lhe a sua meiga coragem. Copiando do mestre, a paz talvez seja algo que, existindo, nunca chega de haver. Sempre algo a adoece e aborrece. Ela esboroa-se como pedaços de fumos que desaparecem na atmosfera.
Na parte inferior esquerda do quadro, P’fuka pendura um objecto ambivalente com uma coloração dourada. Numa primeira vista se parece um crucifixo incompleto. Mas, prestando mais atenção vê-se uma outra coisa, uma espada longa, que atravessa as penas, o ponto central do caos. Talvez seja esse o desvario, o conflito desse enredo que nos contam sem nenhuma palavra dita ou escrita. Com olhos ainda atentos, vê-se sangue deslizando da espada, e um pouco por trás dela. O que a espada representa?
Por muitos anos, a espada foi um instrumento de luta e guerra. Talvez, esteja a falar-nos da guerra, que adia o pouso da pomba. Um apelo à paz que já vai tarde em Cabo Delgado, por ora, é o que me passa pela cabeça. Um cenário de destruição, violência, sangrento e de morte.
O artista funde esses dois objectos simbólicos, tanto na história humana como na ideologia, valores e crenças moçambicanas. Por um lado, a espada, e, por outro, a cruz. Seria a cruz a representação da prevalência da fé como um elemento que explica ainda a permanência do moçambicano no meio de um lugar desprovido de ordem e tranquilidade? Quiçá ela represente que os moçambicanos agarram-se à fé para ainda sonhar com o eterno porvir da paz, e sobreviver num mundo em ruínas, que cai em (des)pedaços.
A obra comunica-se com cada um de formas particular e subjectiva. Qual Moçambique? Essas cores são muito mais íntimas que ressoam dentro da alma. Um mundo interior em destruição, tudo caindo nas mãos do abismo, ou pombas de paz caindo em buracos negros, uma região da existência em que nada, nem mesmo o luzir da esperança, escapa. Mergulhamos dentro da obra, evocando fortes emoções porque, até ao nível psicológico, parece que tudo tende a ir para a anarquia, o que nos leva, de forma generalizada, a dizer que “são maning cenas”. Expressão essa que explica, resumidamente, o desespero, o desabamento, o cabisbaixar, a depressão, a desordem, descarrilo da vida, caos de tudo. Parece que ninguém, nessa geração, tem nada no controle. Como Hernâni da Silva mencionou em “Pressure” (2021), estamos todos a viver essa depressão.
Essa pintura é de 2022, um ano em que se intensificaram os apertos do terrorismo. Também propagou-se a campanha que iniciou em 2020, com a frase “Cabo Delgado também é Moçambique”. É uma mostra da exposição colectiva “Horizontes partilhados e Múltiplos olhares”, na Fundação Fernando Leite Couto, inaugurada no dia 4 de Setembro, com duração de um mês.
Marcos P’fuka, um experiente artista plástico, com várias exposições e premiações, propõe-nos nessa obra cheia de significados profundos a penosa condição do mundo, de Moçambique, em particular, e seus de indivíduos. Um mundo de conflito, onde a existência gira na batalha entre guerra (também internas) e paz, esperança e a falta dela. Tudo abeira-se a um colapso.