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A partitura da vida em Mingas

“Hoje olho para trás, vejo a fila de milhares de homens que passaram pelas minhas camas, e daria a alma para ter ficado com um, mesmo que fosse o pior”
in Memórias de minhas putas tristes, Gabriel Garcia Márquez.

 

Hoje, decidi reflectir sobre a música mais bonita, emotiva, profunda e dolorida que a História de Moçambique já registou: a música de Mingas, intitulada “Mamana”.
A letra foi composta por Zeca Tcheco, o grande baterista da Banda RM, o pai do cantor Denny OG. O baterista compôs a música e ofereceu a Mingas, que a interpretou.
A música tem duas personagens, a mãe e a sua filha. Não se sabe ao certo como tudo começa [a conversa], mas o certo é: a música inicia com a filha chorando.

Quanto ao andamento, a música tem um compasso quaternário, Andante-moderado, rock-solo, mas não muito agitada. A tonalidade está na escala de Fá. Escutando a música, é possível perceber que, para a produção do instrumental, usou-se bateria, piano e duas guitarras.

Na música, o piano serve como um instrumento de base. Para além de criar harmonia entre os instrumentos, também auxilia a bateria na marcação do compasso, o rufar das baquetas sobre a caixa de Ré, um dos instrumentos que compõem a bateria, em diferentes momentos na música, serve para enfatizar o sentido da mensagem cantada, bem como gerar pausas melódicas, a fim de proporcionar um bom “Groove”.

A primeira guitarra faz solo. A que tem som mais agudo e a outra toca baixo, som mais grave, e juntas produzem uma melodia muito rica, que serve de base para a voz principal. A guitarra baixo também cria contratempos na instrumental, gerando um ritmo mais rico sob ponto de vista acústico.

O que é incrível, nesta música, na história da música moçambicana, todas as canções que falam sobre a mãe [mamana] tecem rasgados elogios às mães, que o diga Pedro Bene na música “mamana”, que o diga também o João Cabaço na música “mamana wanga”. São músicas muito bonitas e profundas, que falam sobre as mães, desde já recomendo que escutem.

As músicas acima mencionadas tecem elogios as mães, hora, nesta música, a Mingas faz o contrário. Trata-se de uma música que não é para tecer elogios à mãe, mas, sim, é para afrontar a mãe, encostar a mãe à parede. é isto que é incrível nesta canção.

“Por mais que eu veja alguém que me encante, alegre meu coração, o coração bate forte só de lembrar a ti, mamã”. Portanto, trata-se de uma experiência amarga do passado. Uma experiência muito dolorosa. Dá uma impressão de que, no passado, terá ocorrido uma situação de a jovem se envolver com alguém e a mãe tomar uma posição no sentido de afastar a filha do seu parceiro ou pretendente.

A certa altura, a filha afirma: “Lava hinkwavo valanguiwike hi mbilu yanga Akwaku ava lunganga mamana”, isto é, “todos aqueles que foram eleitos pelo meu coração, para ti, não prestam, e lá está o grito: “Oh hiyo io io io io”.

Num dos momentos, na música, talvez o momento mais alto, sobe de tom para questionar: “o que você quer de mim, mamã? Essa maneira de empurrar-me como se de um plástico eu me tratasse, essa maneira de entregar-me como se eu me tratasse de papel, até vendes-me como se de roupa, eu me tratasse”.

Na citação acima, a cantora usa figuras de estilos, comparação, para enfatizar a mensagem. Segundo Infopédia, dicionário online da Porto Editora, comparação é uma figura de linguagem caracterizada pela analogia explícita entre termos de um enunciado. E, para expressar a dor da desvalorização pela mãe, a artista faz perfeitamente uso da comparação entre a jovem, o papel e a roupa.

Num tom de ousadia, a personagem, com toda coragem do mundo, diz: “Nili vona hi wene mamana”, como quem diz, mãe, se põe no meu lugar.

O que é mais incrível na canção é o direito de contraditório da mãe. A mãe não se pronuncia sobre esse grito, a afronta da filha. Depois da mãe ter ouvido as reclamações da filha, simplesmente cai em lágrimas. Cai em lágrimas e de joelhos chora.

Esta música não é para simplesmente ouvir, mas, sim, escutar, sentir e meditar. Na verdade, esta canção fala da vida de muitos jovens que estão em idade de lar, mas, constantemente estão em casa das suas mães ou vivem sozinhas em casas de renda e a sociedade lá aponta o dedo, certamente não sabem qual é a história destas pessoas.

O nível de divórcio que se assiste, hoje em dia, em Moçambique, do modo particular em Maputo, não será resultado de casamentos por encomenda feito pelos pais? E as jovens que vivem sozinhas, não será que em algum momento é fruto dessa dor de certos constrangimentos, de serem “chavissadas” pelos seus progenitores? Provavelmente, a saudosa cantora Elsa Mangue tenha razão: “ sortudas são às pessoas que se casam e conseguem manter o casamento”.

Não é tarefa dos pais definir com quem os filhos devem ficar. O papel dos pais é um papel paternal, isto é, de aconselhar e não decidir.

A Mingas está de parabéns pela belíssima canção, parabéns também para o Zeca Tcheco, pela belíssima composição, e o saxofonista, pelo sopro de rasgar o coração e massagear a mente. Ele deixa a música mais bonita e profunda, faz com que a música ganhe uma certa melancolia e gere um ambiente propício para uma bela reflexão.

 

Artista: Mingas
Título: Mamana

 

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