“As obras que trazem os toques nacionais são legítimas, estas têm amor-próprio.”
Ziberman (2014)
A literatura tem sido um grande meio de expressão, tanto de expressão quanto de identidade nacional, por isso que Wellek & Werren (2003), citados por Coutinho (2012) entendem que uma literatura nacional, deve ser caracterizada por especificidades de uma nação, ou seja, a literatura nacional, deve abarcar conteúdos que possam diferenciá-la de outras literaturas, dando a aura da originalidade.
A literatura moçambicana, da pós-independência, tinha/tem a ideia de se revestir de Moçambique, a ideia de exaltação da pátria amada. Era notável, tanto nos poemas assim como nas prosas, a presença constante de elementos que representassem, de um certo modo, a sociedade moçambicana.
Para Coutinho (2012) a relação entre discurso literário e identidade nacional, por mais que possa parecer natural e inevitável, é uma construção histórica relativamente recente. Assim como o conceito de “nação”, identificado a “estado-nação”, a noção de“literatura nacional” originou-se na virada para o século XIX, particularmente com os românticos alemães, que divulgaram a idéia de que uma literatura se define pela sua afiliação nacional e pelo facto de que deve incorporar o que se entendia como as características específicas de uma nação.
Antes de mergulharos nos aspectos que representam cor local moçambicana no nosso objecto de análise, jugamos ser imperioso apresentar uma pequena base teórica sobre os conceitos-chave, a saber:
- Narração
A narração, segundo Reis & Lopes (1996), ocupa-se da organização global do discurso e da sua economia interna. A narração pode ser entendida como acto e processo de produção do discurso narrativo, ela envolve o narrador enquanto sujeito responsável por esse processo, por sua vez, o narrador será entendido fundamentalmente, como autor textual, entidade fictícia a quem no cenário, cabe a tarefa de enunciar o discurso.
Os elementos da linguística bantu moçambicana, têm um papel importante na construção do discurso narrativo, da entidade que narra, ao passo que, se se removesse tais elementos (empréstimos), o discurso precisaria ser reformulado, de modo que a função retórica/estética empregue no mesmo, tenha efeitos no leitor, e que haja lógica, esta que permitira a compreensão da mensagem que se pretende transmitir nos textos.
- Representação
Para Reis e Lopes (1996), representação é um termo afectado pela polissemia. Abarca procedimentos de imitação (similitude). Para os autores imendiatamente supracitados, a representação remete-nos á diversas questões, no âmbito literário, uma delas está ligada a problemática do realismo, a representação do real.
Relactivamente à representação, Chartier (1991) citado por Makowieck (2003), debruçar-se da ideia de que é possível vermos que a representação é o produto do resultado de uma prática, no entanto, toma como exemplo a literatura, dizendo que é representação, porque é o produto de uma prática simbólica, que se transforma em outras representações. A autora supracitada diz que para Le Goff (Cf. Pesavento, 1995), representação é a tradução mental de uma realidade exterior percebida e liga-se ao processo de abstracção.
- Cor local
A cor local, como recurso narrativo, recebeu pouca atenção do ponto de vista analítico. Somente nas primeiras décadas do século XX, quase um século depois de seu uso corrente na produção intelectual, o mecanismo tornou-se objecto de pesquisa.
No âmbito literário, Ziberman (2014) define cor local como a produção literária baseada no conteúdo nacional, ou seja é o processo de verter-se das cores do país. A autora diz ser esse o único critério para que se possa produzir uma literatura autenticamente nacional, conclui dizendo que, as obras devem abarcar toques nacionais.
Para Cardoso (2014.), a cor local é um mecanismo narrativo de largo emprego, que se manifesta em diferentes tipos discursivos e engendra um feixe de expressões contíguas que pode ser largamente empregada na historiografia e mormente no campo literário.
O autor imediatamente supracitado diz ainda que cor local significa uma escrita que explora o discurso, o que nos remete a língua, a vestimenta, que em algumas regiões, ainda não tenha sofrido o processo da globalização, os hábitos de pensamento e a topografia peculiares a uma região.
Portanto, achamos que uma análise detalhada sobre a cor local, olhando para as nações colonizadas, por de trazer à superfície a ideia de que a cor local pode ser vista como uma maneira de quebrar a ligação com a literatura do colonizador.
Segundo Matusse (1998. p.74), estudar a moçambicanidade literária, enquanto construção (de uma identidade), não significa uma total arbitrariedade na escolha de elementos pelas quais é construída, e que caminhos são procurados com o intuito de firmar uma identidade, contudo, os autores moçambicanos, movidos pelo desejo de representar a sociedade moçambicana, constroem a sua imagem.
- Análise e Interpretação de dados
Partindo do princípio de que literatura é uma arte, e segundo Hadjicolaou (1973) o artista é intérprete do mundo, atraves das obras criadas por ele mesmo. É sabido que para que se possa produzir uma obra literária, de cunho nacionalista, vestida de cor local, é necessário que se acorra a algum intertexto.
- Empréstimos das línguas bantu como auxílios no discurso narrativo
Segundo Wellek e Werren (2003), para que se possa reconhecer uma literatura como nacional, são três os critérios que devem ser tomados em conta, a saber: Critério linguístico, Critério territorial, Critério cor local
Moçambique tem como língua oficial o Português, para além dele, há vários outros países que também têm-na como oficial também. Entretanto, o autor desta obra, Vestidos de terra, utilizou elementos das linguas bantu moçambicanas na construção do discurso narrativo, como por exemplo: Wuputsu, Masingita, Tchova xi ta duma, Zenterina, Nkakana, Xipoko, Molwenes, nthonthontho, khanimambu hosi, xikwembu, tinhlolo, xikwembu, xingerengere, xikolonhe, etc. Alguns do eventos no universo diegético ocorrem em espaços que existem na realidade, como por exemplo: Zimpeto, Malanga, Manjacaze, Manjacaze, No bazuca, Xiphamanine, Manhica, Maxaque, etc.
- Um olhar sobre os textos – espaços representados
No texto “Rosa”, há uma acção que decorre num espaço designado Zimpento, que o narrador nos dá a conhecer:
“ … o cobrador nem deu por ela porque estava mais preocupado com o dinheiro dos passageiros que desciam e pelos que chamava para entrarem, gritanto Zimpeto via Jardim, Zimpeto…Zimpeto, Zimpeto!” (p.35)
Encontramos no texto “Emproibido Machico”, um outro espaço designado Malanga, onde o narrador descreve a seguinte acção, até alude ao livro “Mangas verdes com sal” de Rui Knopfil:
“ Os meninos da malanga detestavam a sua presença por baixo da mangueira, pois virou um empecilho para o festival de mangas verdes com sal” (p.62)
Em “Jorogina e o Mar”, encontramos um espaço que é, na realidade moçambicana um local de busca do pão-nosso-de-cada-dia, entretanto, nesse espaço, já na narrativa, o autor apresenta-nos a imagem das prostitutas da baixa da cidade:
“ […] dentro da sua mini-saia preenche de segredos e desejos dos machos, […] chegando a baixa da cidade […]” (p.77)
No texto “O Menino do Nada na Cidade”, o narrador conta uma história que acontece num espaço que ao nosso ver é alude a cidade de Maputo, na Avenida Eduardo Mondlane. Nos outros textos, o espaço onde decorre a acção é explícito, no entanto, neste texto, não:
“Ao dobrar a esquina já dobrada antes dele, depara-se com uma estátua. Sim, outra é de um homem com o braço direito erguido o punho cerradíssimo, para não lhe voar o futuro da mão, enquanto a outra mão rente ao corpo, segura um livro volumoso […] ” (p.85)
Neste texto, “Bendita Dhinda”, o narrador relata uma acção que se desenrola no espaco que alude a Avenida acima mencionada, exactamente entre cemitério de Ronil e o SENSAP:
“Era inevitável Bendita Dhinda passar pela casa do terror, porque a boca da ruela sem saída onde vivia com a mãe, era entre o cemitério e os bombeiros” (p.88)
No texto “O Recado do Gumende no Bazuca”, o autor tomou em representação o mercado Xiphamanini, onde está o lugar onde se “pega” transporte para longdas distâncias, é no Bazuca.
“Aqui estamos nós no bazuca, a espera do machimbombo para Manhiça. Aqui no bazuca, xiphamanine, todos os caminhos te levam para casa, no dia que te perderes vem parar aqui, vais encontrar o teu caminho.” (p.121)
- A tradição
Rogério Manjate, representa, em Vestidos de Terra, uma parte da tradição moçambicana, desde os mitos até aos hábitos.
“Amalita”, este texto, representa a fúria dos antepassados quando, os seres vivos, membros da família dos antepassados, não fazem as vontades dos mesmos, por consequência alguma coisa de negativa acontece, no entanto, a religião muita das vezes, não acredita na existência destes e na sua força.
O autor traz-nos representados estes fenómenos no texto, que também concorrem para a representação da cor local, pois trata-se de conteúdo de carácter identitário, são manifestações que a sociedade tem conhecimento.
A personagem Dinoca, segundo como dá-nos a conhecer o narrador, adoeceu, entretanto, quando iam a unidade sanitária, os exames não acusavam, entretanto, quando regressavam a casa, ela piorava, foram, a personagem José dos Santos e sua esposa, a vários centros de saúde, nada acusou, um medico, conhecedor da tradição, aconselhou-os a irem procurar ajuda fora do hospital, pois tal assunto não estava a altura da medicina, sendo católico, José dos Santos hesitou, a priori, mas depois cedeu, chagados ao curandeiro, foi-lhes dito que havia uma força de um entrepassado que estava descontente com a acção da personagem José dos Santos, aquando do nascimento de sua filha Dinoca. Passamos a citar:
“A menina está pior […], nenhuma reza a nenhum Deus lhe baixava as febres [..] vê-se que ela não está bem, contudo, é algo que nos ultrapassa […] vai ao curandeiro […] mas nós não andamos nisso, eu sou católico. Minha filha nisso não! És mais católico do que quem para não salvar a vida da sua filha […] a menina ia passando de mão em mão a espera de milagres Zé, temos que ir. Vamos ao curandeiro […] o ritual do curandeiro era muito simples. […] o velho regeu-se no peito da menina e apanhou o espírito, era de uma mulher, sentou-se calmamente na esteira e disse: boa noite meu sobrinho José. […] então por que é que nunca nos apresentaste a tua mulher pois entregue-me a menina. […] eu não quero muitas coisas, sobrinho, quero que dês o meu nome a esta menina.” (pp.108-11)
Ligado a questões de tradição, está também o texto “A Morte Pronunciada”, onde o narrador, conta a história de uma personagem que aquando da sua nascença, foi-lhe atribuído o nome de Xikapeko, todavia, o pai teve de levá-lo ao registo, onde nomes tradicionais não eram aceites, só que o nome Xikapeko foi-lhe dado pelos antepassados, entretanto, a senhora da conservatória não o aceitou, propondo-lhe nome português. Rodrigues, foi o nome escolhido, que moçambicanizado, ficou Lodiriki. Tal acto foi uma afronta aos antepassados:
“ Sim, Rodrigues, é mais português. O espanto assaltou a cara do pai, indignado disse: mas ele é daqui. Numa noite de verão […] inesperável […] Xikapeko morreu […] terá sido o vizinho Ngumina, com inveja de não fazer filhos […] Lodiriki, que nome é esse, perguntou o caçador de espíritos […] se os espíritos lhe empossaram nome de Xikapeko, porque contrariaram” (pp.142, 143)
De facto, na nossa sociedade, e segundo os mais velhos, conhecedores das leis tradicionais, nunca se pode contraria a vontade dos antepassados, pois de uma ou de outra forma haverá consequências negativas. Nestes textos, o autor, ao nosso entender, construiu aquilo que é a imagem da sociedade moçambicana em particular, no que tange a tradição. Em muitas famílias, o critério de escolha do nome não está nas mãos dos progenitores, mas sim, muita das vezes dos antepassados.
Encontramos também como dado a ser processado, a questão dos mitos, histórias mitológicas transmitidas de geração em geração. O autor recorreu a um intertexto pertencente a literatura oral, moçambicana, para poder construir algumas acções das personagens no universo diegético.
Podemos ver, no texto em que a personagem Arbelo Magaia, gabava-se por nunca ter atropelado um cão, entretanto, o asar não tardou, durante a sua jornada laboral, conduzindo, atropelou um Cão, daí que, pensou ter tomado de tal acto, um asar tremendo. Vejamos a seguinte passagem textual:
“Lembra com orgulho que nunca atropelou um homem, muito menos um Cão […] quis deus tecê-las: quando ia virar para entrar a garagem, apareceu-lhe a frente um Cão que vinha correndo, fugindo dos miúdos que o apedrejavam. Mais rápido que o de repente, seu pé, não ele, pisou o travão e os pneus chiaram tchuiiimm, seguido de phú! E a vida do Cão suspendeu-se no ganido incompleto […] o cão morreu […] começaram os tormentos do motorista Arbelo Magaia. quem atropela um cão, abre o caminho para mais acidentes e desgraças , nos dias seguintes.” (pp.114,115)
Este conto reflecte aquele que é o pensamento de alguns indivíduos na sociedade, no diz respeito à este mito. Há quem acredite que sim, basta atropelar um cão são “sete anos de vacas magras”, portanto, o leitor, ao se deparar com este intertexto, logo irá ser transportado à literatura oral, que é esta, ao nosso entender, que o autor utilizou para a construção de parte deste conto.
Portanto, alguns textos da obra em análise, tem uma função pedagógica a nível tradicional, social, etc., pois, entendemos que a sociedade moçambicana tem como uma das bases de educação, a tradição e os provérbios:
Os textos “Amalita” e “Morte pronunciada”, são uma representação concreta daquilo é uma parte da nossa tradição, pois é sabido que tudo na vida tem regras, a tradição também é muito regrada, vejamos que no texto “Amalita”, o motivo que trouxe a doença era desconhecido pelos pais, até o conhecimento científico não conseguiu saber o que realmente se passara, até que se recorreu ao curandeiro, este que tem o poder de entrar em contacto com os antepassados. Descobriu-se que um antepassado é que estava zangado com o pai da personagem, por este não ter cumprido com a vontade dele.
No texto “A morte Pronunciada”, houve uma violação da vontade dos antepassados por parte do pai da personagem Lodiriki, pois este, tinha um nome tradicional, dado pelos antepassados, entretanto, quebrou-se o pacto, Lodiriki pagou com a vida. Quando não se obedece o que os antepassados mandam, alguém tem de pagar. É o que este texto dá a entender.
Nos aspectos de ordem social, no texto “Amlita”, o narrador dá-nos a conhecer o que acontece na unidade sanitária na qual levaram a menina, as condições higiénicas que deixam a desejar, a demora no entendimento, a impaciência de alguns pacientes, ou por outras, descreve o que acontece nalgumas unidades sanitárias da realidade.
Em jeito de conclusão, Noa (2003), diz-nos que, quanto maior for o investimento na autenticidade do representado, maior é a sobreposição dos diferentes códigos que regem a visão do observador. Entendemos que o autor desta obra, o que está a representar é resultado do contacto que teve com cada objecto representado, até porque as obras literárias têm alguma coisa do “eu” do autor.
- Referências Bibliográficas
Bernd, Zila. (1992). Literatura e Identidade Nacional. São Paulo: Editora UFRGS.
Freitas, Savio Roberto Fonseca de & Pinheiro, Vanessa Riambu. (2020). Dos Percursos pelas Áfricas à Literatura Moçambicana. João Pessoa: Editora UFRGS.
Manjate, Rogério. (2021). Vestidos de Terra. Maputo: Cavalo do Mar.
Matusse, Gilberto. (1998). A Construção da Imagem de Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulane Ba Ka Khosa. Maputo: Livraria Universitária.
Noa, Francisco. (2003). Imperio Mito e Miopia. Lisboa: Editora Caminho.
Reis, Carlos & Lopes, Ana Cristina M. (1996). Dicionário de Narratologia. 5a ed. Coimbra: Livraria Almedina.
Wellek, Rene & Warren, Austin. (2003). Teoria da Literatura e Metodologia dos Estudos Literários. São Paulo: Martins Fontes.
Zunguze, Pedro Manuel Natingue. (2009). A Representação do Espaço Suburbano na obra Xikandarinha na Lenha do Mundo de Calane da Silva como Afirmação da Moçambicanidade. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane.
Artigos científicos em formato eletrónico:
Cardoso, Eduardo Wrigth. Uma nação para ser vista: Desvelando o Tempo e o Espaço Nacionais por meio da Cor Local na Historiografia Oitocentista. Disponível em: https://www.scielo.br/j/topoi/a/9LYWWv8mwdFZKPtJ5m5bFKh/?lang=pt&format=pdf, acesso em: 6 de Outubro de 2025.
Coutinho, Eduardo F. (2012). O conceito de Literatura Nacional e a Crise de Identidade na América Latina. XIII encontro da ABRALIC internacionalização do Regional, UEPB/UFCG, 1-2. Disponivel em: https://abralic.org.br/anais/arquivos/2012_1434241663.pdf, acesso em 6 de Outubro de 2025.
Makowicky, Sandra. (2003). Representação: A palavra, a ideia, a coisa. n.57, 1-6. Disponível: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/downloaad/2181/4439 , 7 de Outubro de 2025.
Ziberman, Regina. (2014). Cor Local e História da Literatura. Revista de Literatura e Diversidade Cultural, v.13, n.6, 9-16. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/32356744_Cor_local_e_Historia_da_literatura , acesso em: 7 de Outubro de 2025.
