Como diz o adágio popular “se a boca não regula, o corpo actua”, e quando a boca não consegue expressar as dores da alma, quem actua?
Na noite do dia 22 de Agosto do ano de 2025, no centro cultural Franco-Moçambicano, foi encenada uma peça de dança coreografada e dirigida por Ídio Chichava, onde Açucena Chemane, Armindo Teimizira, Calton Muholove, Cristina Matola, Fernando Machaieie, Judite Novela, Mauro Sigauque, Martins Tuvanji, Nilégio Cossa, Patrick Manuel, Stela Matsombe, Osvaldo Passirivo e Vasco Sitoe, cantaram ao vivo em changana em misturas sonoras que passam pela Marrabenta e pelo Xigubo, envoltas na dança contemporânea.
Os adereços minimalistas como cordas, cestos, pneus e até um carrinho de compras transformam objectos do quotidiano em memória carregada. Não é apenas coreografia é um acto colectivo que reclama a presença, exige uma respiração partilhada e, por fim, reverte a hierarquia entre quem olha e quem actua.
O bailado que circula em turnê há cerca de três anos dentro e fora de Moçambique, é das poucas obras de dança com cerca de 20 pessoas em digressão.
No que se refere à indumentária, os dançarinos trajavam apenas um calção , com o intuito de eliminar fronteiras para permitir a livre emigração e expressão do corpo. Nisso, os Vagabundus são exímios: com muito pouco, representaram uma peça de dança carregada de um forte senso identitário. A vibração que emanava do palco era tão poderosa, que durante o espetáculo já não havia separação entre os espectadores e os dançarinos eram todos um só grupo! Cada espectador viu as suas dores e os seus desafios serem dançados pelos intérpretes e teve a oportunidade de literalmente subir ao palco e ser mais um “vagabundo”.
Para compreender este bailado, basta entender o nome do grupo: “Vagabundus” (alguém que vaga ou perambula sem destino fixo. Pode ter uma conotação negativa ou positiva, esta última, designando alguém que viaja por prazer ou aventura). Nesta obra, há uma “migração vagabunda” do corpo humano em estado de emergência. É como uma garrafa de champanhe agitada pelas dores da alma e pelos desafios da vida que, por fim, encontra espaço para explodir ou melhor, para se expressar.
Migração do corpo” refere-se ao deslocamento físico e simbólico que os intérpretes encenam atravessando estilos, espaços e afectos. Já “estado de emergência” traduz a urgência e a pressão sob as quais esses corpos se movem: uma dança que é resistência, sobrevivência, rito, celebração de rua, memória e denúncia ao mesmo tempo.
Os “Vagabundus” preencheram a sala de espectáculo do Franco-Moçambicano e dançaram com fervor as dores do quotidiano… dores tão acumuladas que os corpos tremiam, chacoalhavam e gemiam de exaustão, de dor, de repúdio, até tudo se acalmar, através da própria dança. Em cena, a “migração” manifesta-se em três campos entrelaçados:
- O espacial: onde danças colectivas, com passos sincronizados revelam um acto comunitário. Entretanto, quando um dos bailarino afastou-se, insistindo em passos próprios recusando a sincronização, trouxe algo sobre a singularidade dentro da colectividade. Esse dançar singular prova que a dor é individual, e que cada um a expressa de forma única sem perder o senso comunitário.
- O vocal: no qual as respirações viram gritos e sussurros se compõem em canto coral que paulatinamente invade o peito e ecoa pela sala.
- O afetivo-político: onde o tremor do corpo é tido como sinal de emergência. O povo diz “basta”. Aquela vibração pequena que antecede a ruptura e a imagem da garrafa comprimida até explodir é a metáfora certa para o estado que a peça encena.
O fôlego exigido pela proposta “cantar e dançar de forma ininterrupta” cobre a peça de glória, mas também revela fragilidades: em obras longas, a intensidade pode perder nitidez e alguns dançarinos recorrem a gestos contidos, muitas vezes por gestão de energia ou por puro cansaço, o que, no entanto, não teve impacto negativo significativo.
Se pode questionar a escolha das músicas, mas o facto é que foram todas executadas com maestria. O bailado começou com uma canção que denuncia a pobreza física, mas exalta a riqueza de espírito. Seguiu-se uma música espanhola entoando um pedido de desculpas, como se fosse um ritual sem dogmas. A última canção evocou a despreocupação da infância, convidando o público para brincar alegremente, como uma criança.
O público que se entregou à criação marcante de Ídio Chichava deixou a sala de espectáculo transformado inesperadamente, “Vagabundus” revelou-se um íman que puxa o espectador para uma travessia que mistura dor e alegria. E isso é um mérito raro.