Falar do meu percurso é falar das leituras que eu fiz no decurso da minha vida. Não posso falar de mim mesmo sem me referir à importância que o livro representa para mim particularmente. São os livros, são as leituras que fizeram o homem que sou hoje. Quando me refiro às leituras, estendo-as àquelas leituras que igualmente me foram facultadas por via oral, de acordo com as nossas tradições, e aquelas que também me são facultadas pela própria realidade que me circunda, no meu quotidiano. Realmente nãome posso furtar, obviamente, à literatura oral, que me chegou por via da minha mãe, dos meus tios e outros anciãos com quem cruzei no meu processo vivencial. Igualmente não me posso alhear do modo como apreendo a realidade que me envolve, observando-a, lendo-a, sobretudo, embora todas estas leituras estejam interligadas entre si.
Tem graça que os livros e a leitura colocam-nos sempre um paradoxo insolúvel: quanto mais os lemos mais nos remetem à dolorosa conclusão de que nada sabemos. No dizer do filósofo Sócrates: “só sei que nada sei”. Isto é, quanto mais buscamos o conhecimento, mais nos sentimos ignorantes e incertos, face à nossa estupefacção diante da complexidade do mundo em que vivemos. O livro e a leitura, para mim, ultrapassam de longe um simples exercício lúdico, passando a ser um instrumento de conquista do mundo.
Por isso mesmo, sempre que se fala da promoção do livro e da leitura, este tema mexe muito comigo, porquanto eu próprio sou um produto do livro e da leitura. Confesso que enveredei por este caminho por pura opção. Eu nunca quis ser um engenheiro, um médico, um economista, ou algo parecido. Sempre quis ser um lavrador de terrenos áridos, plantando palavras, um debulhador e um intérprete de signos representados por esses vocábulos. Estou consciente de que enveredei por esta via de forma arrojada, posso assim dizer, louca, tomando em conta a época, e não só, em que esta decisão foi tomada.
Todo o meu percurso, sem exagero, está intimamente ligado ao livro à leitura. Sou um autodidacta por excelência, tanto é que a autodidaxia não tem meta, não tem fim. É um exercício que uma vez abraçado é para todo o sempre, enquanto a vida durar. É justamente este exercício que me oferece um certo conforto na vida.
O livro, esse, foi sempre meu companheiro da vida. Talvez mesmo, muito mais do que se possa imaginar. Sou um testemunho vivo da magia do que um livro pode fazer. O livro transforma, o livro educa, o livro forma, o livro liberta, o livro propõe soluções possíveis, face aos constantes problemas que o quotidiano nos coloca. Vivemos num mundo, em certa medida, caótico, imperfeito, incompleto. Cabe-nos então, de entre as infinitas possibilidades, construir um mundo ideal. A vida é uma dádiva que nos foi entregue assim mesmo, nua e crua. Cabe-nos então transformá-la, melhorá-la, à imagem e semelhança da felicidade que almejamos.
Tudo o resto que tenha acontecido comigo, os oficios que experimentei, os cargos que ocupei, os livros que escrevi, as mulheres que amei, os lugares que conheci, as alhadas de que me desembaracei, as batalhas que venci, tudo, foi por conta da minha formação e experiência livrescas. Portanto, tudo quanto eu tenha feito e ganho na vida deveu-se a esse fenómeno que leva o nome de livro.
A propósito de locais, eu tenho dito que as minhas primeiras viagens fi-las em naves de livros. Lembro-me claramente que conheci, por exemplo, o famoso bairro de Manhattan, as avenidas de Nova York, a cidade das gôndolas do amor de Veneza, as cidades de Axum da antiga Etiópia, de Timbuktu (Mali), as pirâmides do Egipto, a Alexandria da nossa biblioteca reduzida a cinzas, a cidade proibida e a muralha da China, a cidade subterrânea de Toronto, o mar da tranquilidade e as planícies lunares, os desfiladeiros de Marte, entre outras geografias, através de livros, muito antes de alguns destes lugares eu conhecer efectivamente. Aliás, a minha obra “Minhas Leituras e Outros Olhares” – é um dos exemplos ressumados de autores e livros que me levaram a descobrir o mundo.
No plano literário, não podia falar de autores que muito influenciaram o sujeito poético que habita em mim, sem me referir à Sophia de Mello BreynerAndresen. Essa aristocrata tanto da sociedade quanto da poesia portuguesas foi, realmente, uma dasresponsáveis não só através dos seus escritos como também da sua própria mão, pela lapidação do poeta que sou, e pela minha formação literária em geral. Lembro-me que passávamos horas a fio ela a discorrer sobre as “leis” intrínsecas da poesia, e eu a ouvir atentamente e a tomar minhas notas. Foi de facto um grande e raro privilégio ter conhecido e convivido com esta que é uma das vozes mais importantes da poesia universal. No rol destes “influencers” meus, encontramos autores como Luís Bernardo Honwana, Noémia de Sousa, Eugénio de Andrade, Carlos Drumond de Andrade, Pablo Neruda, António Osório, Paul Éluard, Arthur Rimbaud, André Breton, Matsuo Bashō, Saint John Pearse. Aqui incluo também ensaístas e filósofos como Roger Garaudy, Jorge de Sena, Jean Paul Sartre, George Luckacs, Albert Camus, Marx, entrevários outros.
Desde pequeno, descobri que o verdadeiro feitiço da vida, ou melhor, o feitiço mais poderoso do mundo é o feitiço do “homem branco”, parafraseando Eduardo Mondlane – citando a sua mãe sobre a necessidade de estudar, estudar sempre. Sim, dizia eu, é o feitiço do livro capaz de nos levar à qualquer lugar da nossa região planetária, capaz de nos induzir, por exemplo, à criação de fontes de energia pura (a energia do futuro), tal como faz o sol no processo da fusão nuclear, conforme os experimentos e pesquisas em curso nos prometem. A precariedade do nosso continente, acredito eu, só pode ser superada abraçando verdadeiramente o feitiço do livro, com vista ao domínio do átomo, essa essência que nos revela os segredos de como o universo funciona.
*Texto introdutório da conversa alusiva ao Dia Mundial do Livro e Direitos do Autor, na Casa do Professor.