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A dura noite de milhares de deslocados

Foram horas de caminhada de várias comunidades do distrito de Chiúre, em Cabo Delgado, até darem ao distrito de Eráti, na província de Nampula. Muitos carregavam trochas com alguns utensílios de uso doméstico, alguns mantimentos básicos, como mandioca seca, e outros ainda conseguiram levar consigo galinhas vivas.

A longa maratona dos deslocados é penosa. Caminham pela estrada nacional Número um (EN1), sem um destino concreto. Há crianças de tenra idade que são obrigadas a fazer mais de 50 quilômetros de caminhada, debaixo de um sol escaldante, para além de mulheres que carregam crianças de colo e bebés nessa aventura indesejada.

A vila-sede de Eráti chama-se Namapa e acaba sendo um destino possível. Para chegar a Nampula, ido de Cabo Delgado, atravessa-se o rio Lúrio que, com o caudal considerável que apresenta por estas alturas, acaba transmitindo uma falsa sensação de que os terroristas não atravessaram de Chiúre para Nampula, visto que, por regra, não usam as vias convencionais, como a EN1, mas sim as rotas do interior da mata densa e, assim, o rio acaba sendo uma barreira.

Muitos estão combalidos. Os corpos desidratados e vencidos pela fome levam os adultos a submeterem-se a um silêncio amargo. Ladeados de trochas, pousadas no chão, ouvem e vêm as crianças chorarem de fome.

Não há alguém que disponibilize comida e nem água. Nem o governo local e muito menos organizações não-governamentais ou da sociedade civil. Estão entregues à sua sorte.

A descrição acima é referente à quarta-feira (21.02). A noite cai e cada um fica entregue à sua sina. A Escola Secundária de Nacucha serve de abrigo temporário. Aliás, de abrigo não tem nada, pois as cinco salas convencionais não chegam para tanta gente.

A solução encontrada é entregar-se à amargura da noite, ao relento, sem algo para cobrir e à disposição dos mosquitos. Vinte a trinta por cento dos deslocados são crianças.

Um homem que se identifica como ex-paraquedista da tropa nacional está entre os deslocados que saíram do posto administrativo de Ocua, alvo do último ataque de terça-feira. “Desde ontem [entenda-se antes de ontem] até hoje, nem pelo menos papa para as nossas crianças. Quase estão a cair na miséria (…) Conforme como estão a ver, nem pelo menos rede mosquiteira. Conhecem a fuga de uma guerra? Não levamos nada onde saímos”, desabafa Armando Napicaneque.

Deixamos o local por volta das 22h00. A noite era escura, com “faíscas” intermitentes a clarearem um pouco o céu. Era o relampejar que anunciava o que viria a acontecer horas depois, durante a madruga desta quinta-feira: a chuva.

Foi chuva fraca, mas o suficiente para molhar boa parte dos que estavam ao relento. Aumenta o sofrimento de quem foge do terror imposto pelos insurgentes.

Quando o dia nasce, é momento de reflexão. A situação de abandono prevalece e o senhor Joaquim Pizai ordena a sua filha de 11 anos, sua esposa e cunhada para arrumarem tudo e toma a decisão de voltar à procedência – o posto administrativo de Ocua.

“Decidi voltar por causa do sofrimento. Desde que cheguei antes de ontem que chegamos aqui, não temos alimentação. É preferível voltar. Liguei para a família que ficou lá e disse que já estão livre. É por isso que estamos a nos dirigir à casa”.

No seu agregado, há três menores de idade que também entram na longa caminhada. “Daqui para lá vamos levar umas três horas”, diz o homem, com o semblante carregado de revolta.

Depois da entrevista, educadamente dirige-nos as últimas palavras: muito obrigado. Que Deus vos abençoe.

Retribuímos com o mesmo carinho e a família desaparece no horizonte, numa marcha na berma da estrada, pisando o chão quente do alcatrão preto. 

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