Lágrimas no Estendal do Tempo, de Carlos Nhangumele, chancelado pela Cratylus, E.I, é um romance que se enquadra no Realismo, pois faz um retracto objectivo e fiel da vida de Tomás Mascarenhas, que abandona a família por mais de uma década e só regressa morto a casa. O autor, com esta obra, além de sugerir através do título a metáfora de que o tempo cura tudo, alterca as questões com que o país se defronta e as suas vicissitudes actuais e atemporais: a corrupção, o desemprego que reenvia os jovens à formação militar, a insurgência em Cabo Delgado e a crítica ao sistema hospitalar, revelada pela busca por melhores tratamentos na África do Sul.
Estamos diante de um romance, em consonância com Silva (2006), de acção ou de acontecimento, visto que se relega à análise psicológica das personagens e à descrição dos meios para o segundo plano, em detrimento da sucessão e do encadeamento das situações e dos episódios sobre o que aconteceu com Tomás e a sua família. É uma obra composta por 38 capítulos intitulados e, quase todos, epigrafados, e um prólogo.
Trata-se de intrigas com princípio, meio e fim bem estruturados. O título (Lágrimas no Estendal do Tempo) é justificado pelo fardo carregado pelo personagem Tómas ao longo do seu percurso; da constituição, abandono até ao seu regresso à família, vai despoletando uma sequência de acções que, naturalmente, giram à sua volta; um realismo que, fazendo a anatomia do carácter, critica o Homem e, como arte, pinta-o, condenando o que há de mau na nossa sociedade.
A estória de Tomás desenvolve-se em Maputo, Sofala, Nampula, Inhambane, Cabo Delgado e África do Sul. O tempo é actual. Os objectos e eventos culturais têm existência empírica e emigraram para o universo ficcional; por exemplo, a referência do narrador à música de Mabermuda, recordada por Mavie, quando viu Tomás a tomar uma 2M; outrossim, à música de chamada no Huawei do narrador, “Running to you”, de Chiklé e Simi, entre outros. Assim sendo, o narrador, enquanto nos vai dando a conhecer a diegese que envolve outros personagens (Sara, Mavie, Rita, Sandra, Paulo, Sofia, Kito, Nália, Nguila, Gimwandruzana, e o Mecânico), vai levantando questões filosóficas como: o sensível, o existencialismo, o prelúdio de metamorfoses e a dialéctica da solidão e do (re)encontro.
Desta feita, os traços em referência são patentes na história de Tomás que, envergonhado pela sua condição de esterilidade e com raiva da sua esposa, Sara, por ter feito filhos fora do casamento para provar que ela não era o problema, Tomás, curado, abandonou a vida militar para abraçar a de motorista, mas, nas cidades por onde passava, deixava filhos e, em Mueda, ainda militar, envolveu-se com Rita, sua colega, e o resultado foi: Sofia, que mais tarde veio a se relacionar com o primogénito da Sara, esposa de Tomás, situação que gerou tensão, porque Rita acreditava que a filha se havia relacionado com o seu irmão sem saber. Esse incidente serviu também para a revelação da verdade do dito, de que dadas as circunstâncias de abandono por três anos, Sara ter-se-ia envolvido com Mavie, pai do seu segundo filho, Kito. Ademais, Tomás foi contraindo matrimónios frustrados com várias mulheres ao longo do país, e regressa morto da África do Sul, para a responsabilidade da sua família, constituída com Sara.
O sensível, sendo o que se produziu com o transcender, sem que as personagens tenham consciência do mesmo, resultado da impulsividade, desejo, apetite e aspiração, nota-se quando a personagem Tomás abandona a família e abraça a vida de motorista, depois de receber uma indemnização das FADM. Como uma acção inconsciente, o próprio personagem afirma, a dado passo, ao conhecer uma mulher masena, Suzy, o seguinte: “(…) o diabo tentou-me e (…)” (Nhangumele, 2024:115) e quando diz “Juro que aquele dinheiro me cegou (…)” (Nhangumele, 2024:115), para lidimar a ausência da consciência na transcendência.
Como muito bem nota Shelling (s/d), apud Da Silva (2002:127), “o Eu, portanto, não é sensível se não existe nele uma actividade que ultrapassa o limite. Devido a esta actividade, o Eu deve, para ser sensível a si mesmo, colher em si (o ideal) o estranho.” De facto, Tomás, do seu desejo de vingança, vai ultrapassando os limites, sem controlar os apetites, traindo Nanda pela empregada, makuwa, acolhendo o estranho, na medida em que não cabe na sua imaginação o seu comportamento de ingratidão, como se lê: “(…) mas que trocaria a minha então esposa, que me tirara da sarjeta e resgatara por uma secretariazinha, nunca tinha imaginado. Este foi o motivo que me fez separar-me de Nanda e perder mais uma vez o lar e, inclusive, a oportunidade de me reerguer depois de tanta coisa que vivi.” (Nhangumele, 2024:126) (grifos nossos)
Mais profundo ainda foi quando Tomás, não aguentando com o facto de que ele era o problema de o casal não ter filhos, associado às provas de Sara, sua esposa, que engravidara de Mateu, a convivência com ela reflectia uma canalização do seu sofrimento a si, conforme assevera Sara: “(…) Tomás vivia batendo em mim. O insulto que quisesse endereçar ao Paulo endereçava-o a mim (…)” (Nhangumele, 187:187).
O abandono e os resultados, a maneira como Tomás termina encaixam-se no prelúdio de metamorfoses, o diálogo entre a aparência e o ser, a ideia do carácter esquivo e desorientador da existência, dessa eterna transcendência da verdade: “o que nos envolve imediatamente, o mundo que se inscreve na percepção das personagens pode esconder e não “mostrar” o que está por detrás dele, as coisas podem ser enganosas e falazes” (Da Silva, 2002).
Tomás acreditou que quem era problemático era a esposa, até porque, no seu meio, na voz da personagem Sara “(…) não importam os motivos. (…) homem sempre tem razão (…) sem se fazerem exames, já se concluía que estéreis são as mulheres. Homens são uma bênção. Não carregam nenhuma maldade…” (Nhangumele, 2024:187); mais ainda, viu-se na melhor opção, porque, também tinha indemnização, abandonou a família e, das peripécias amorosas, terminou abandonado, regressando morto para a responsabilidade da sua primeira família, não que o fadário da morte fosse evitável.
O abandono à família é igualmente a dialéctica da solidão e do encontro, a acepção de que a sociedade em que se desenvolve a nossa existência pública é uma esfera de contrafacção, dissímulo e hipocrisia. A vida que cumprimos nesse contexto é um contínuo afastamento de nossas possibilidades pessoais, um papel que não decorre dos reclames da nossa vocação original, mas que se impõe pelas circunstâncias da exterioridade colectiva. É todo esse cenário que Tomás tentou manter com Sara, com o casamento, tanto que até à revelação da verdade, estaria o segredo intacto entre Sara e o próprio Tomás, este último carregando o peso, enquanto se ostenta o conceito de família unida e feliz.
Tratando-se de uma história de um casal (um romance), no plano deste, o amor e a aventura igualmente o caracterizam; curiosamente, surge-nos uma questão correlata a essas características, respondida por Noa (2008), analisando Meledina, de Aldino Muianga: Qual é o espaço do amor na obra de Nhangumele (2024)? A saber: “não é uma história de amor, mas da sua impossibilidade, devido a condicionalismos vários, inerentes às próprias personagens e ao contexto em que se encontram” (Noa, 2008:5). Em outros termos, Tomás e Sara, apesar de se amarem, não ficam juntos.
Portanto, Lágrimas no Estendal do Tempo, de Carlos Nhangumele, examina alguns problemas últimos da vida, desencadeados pelos personagens ao longo do percurso de Tomás, que representa a história de um homem que vive assediado pela imagem daquilo que lhe falta, que não podia ter mais, porque Sara havia já se relacionado com Mateu e Mavie. Queria ser ele pai do primogénito Paulo e do Kito. De facto, como assevera Sartre, apud Da Silva (2002), “o Homem é aquela realidade que não é o que é, é o que não é (…) o ser que se realiza na sua própria superação” e, acrescento, até à morte.
Bibliografia
Activa
Nhangumele, Carlos. (2024). Lágrimas no Estendal do Tempo. Maputo: Cratylus.
Passiva
F. da Silva, Vicente. (2002). “O sensível, o existencialismo, o prelúdio de metamorfoses e a dialéctica da solidão e do encontro”, in Dialéctica das Consciências e outros ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
N. Francisco. (2008). Meledina (ou a história de uma prostituta), de Aldino Muianga: A Arte da Memória. Via atlântica nº 12 DEZ/2007.
A. Silva, Victor Manuel. (2006). «Génese e o Desenvolvimento do Romance», in Teoria da Literatura (8ªed.). Coimbra: Almedina. Pp. 671-686.