Desconhece-se o primeiro homem ou mulher que se serviu da expressão “estou com ele/ela por causa dos filhos” para tornar as suas investidas amorosas um sucesso. Mas se essa expressão tem sido usada recorrentemente por pessoas comprometidas em momentos de paquera, talvez se deva admitir que ela realmente tenha uma grande força de persuasão. Afinal de contas, os filhos são o bem primário de casamento, o melhor fruto que se pode gerar de uma relação amorosa. Na perspectiva bíblica, os filhos configuram-se a mais preciosa finalidade de uma relação conjugal, ordenando-se no Génesis 1:28 “crescei e multiplicai-vos”.
Se realmente a finalidade do casamento é de formar uma família no sentido tradicional “pai, mãe e filho” quiçá, valham a pena muitos sacrifícios para manter-se sã e salva esta estrutura familiar. E muito se
sabe sobre a importância de os filhos crescerem dentro de uma estrutura familiar estável. As vantagens incluem a maturidade emocional, habilidades sociais, autoconfiança e capacidade de eles construir relações saudáveis no futuro. E o risco de os filhos crescerem sem uma estrutura familiar é de serem propensos a comportamentos autodestrutivos como uma forma de preencher a sentida ausência do pai ou da mãe na sua vida.
É, no entanto, importante ressalvar-se que as consequências referidas não constituem uma regra geral, mas são probabilidades acompanhadas obviamente de excepções. Ou seja, de modo algum, se deve ter como uma condenação fatal de que quem cresce fora de uma estrutura familiar acabe desgraçado.
Tratam-se de probabilidades que podem ser desafiadas e revertidas, quando houver esforço para tal. No entanto, o normal das probabilidades é de compor estatísticas e regras gerais. Dois artistas moçambicanos souberam explorar esse fenómeno social nas suas músicas. No presente artigo, proponho-me a analisar as canções “Ungani suvisie” de Eugénio Mucavel e “Mutchela Usiwana” de Avelino Mondlane. São duas canções que retratam, de forma comovente, as consequências nefastas que uma separação pode causar na família: filhos desamparados.
Os dois cantores foram unânimes ao destacar a desgraça dos filhos como uma terrível consequência de os pais se separarem. O estranho é que, em momento algum, os dois cantores chegam a questionar, em toda a sua composição, a felicidade dos parceiros, como se, no casamento, a maior felicidade consistisse em o casal cuidar dos seus filhos, garantindo-lhes um crescimento saudável. Tanto para Eugénio Mucável como para Avelino Mondlane, os filhos deveriam ser os maiores bens a ser preservados no casamento. Ou seja, os cônjuges deviam viver pelo bem-estar dos filhos. Os seguintes excertos da canção “ungani suvisie” e mutchela usiwana” denotam esse propósito matrimonial.
Phula dri hola, nkata, a lizandzu hidza tsongo
(Vai com calma, esposa, o amor ainda é tenro)
(…)
Ungani suvisie, nkata, apswô, ni tsiki ni duwala nyana
(Não me descartes, minha esposa, deixa-me envelhecer um pouco)
A vana va hina vanga sala valhupeka
(os nossos filhos podem ficar a sofrer)
Swita kula hi usiwana, swita yentxa swinyolwetana
(Vão crescer na pobreza, serão marginais)
Swi pfumala tidjondzo, swi pfumala lhayiseko.
(Não terão ensinamentos, não terão o bem-estar)
Kasi swi oni yini?
(Afinal, que culpa eles têm?)
Alweyi wa nuna aku ongaka, anga tava gweta a vana va hina
(Esse homem que te está a iludir, não vai sustentar os nossos filhos)
(…)
Avelino Mondlane
In (Ungani suvise)
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Mutchela usiwana a vana va nwina
(Vocês condenam à pobreza os vossos filhos)
Vata kula hi mbinyeto, vana va nwina
(Vão crescer no sofrimento, os vossos filhos)
Nava tiva ku mbava na mamane va a mbanili
(Sabendo que papai e mamãe separaram-se)
Mo kota mutsikana, mbava na mamane
(Ousaram mesmo separar-se, pai e mãe)
Mu yaki muti mule va mbhiri
(Construiram a casa a dois)
Mu yaki muti usiwanini
(Construiram a casa na pobreza)
Muyo randzana mule va mbhiri
Fizeram juras de amor a dois
Mu dumbisana ahu ntomwini
Comprometaram-se na vida
Malembe yaku tala mule va mbhiri,
(Após longos anos juntos…)
Mu tsikanela yini, mbava na mamane?
(Porque se separarem, pai e mãe?)
(…)
Avelino Mondlane
In (Mutshela usiwana)
Da primeira canção, percebe-se que Eugénio Mucável teme unicamente pelo futuro das crianças. Pouco questiona sobre a sua felicidade individual como marido e a felicidade dela, como se lhe não importasse dentro do casamento. A sua preocupação consiste unicamente no bem-estar dos filhos. E uma preocupação tão desesperadora que ele chega a duvidar das boas intenções do amante, pressentindo que este não será capaz de cuidar dos seus filhos. Nisto, o artista reforça ainda mais a ideia de que o casamento ou uma relação conjugal só fazem sentido se forem consagrados ao bem-estar dos filhos, pouco questionando se, na segunda relação, a sua mulher será verdadeiramente feliz. E se Mucável não se faz essa questão, subentende-se que a felicidade do casal, dentro do casamento, define-se unicamente pelo bem-estar dos filhos.
figura-se-nos que para Eugénio Mucável, qualquer tipo de felicidade matrimonial, que não inclua os filhos, é simplesmente uma miragem, perdição, vaidade.
O mesmo conceito de felicidade matrimonial é partilhado por Avelino Mondlane, na sua bela canção “Mutchela Usiwana” em que antevê um futuro desolador dos filhos com a separação dos pais. Ele também não chega a questionar se a felicidade individual dos parceiros é mais importante que o bom crescimento dos filhos. Avelino assume a priori que não há maior felicidade dentro do lar, senão aquela de ver os seus filhos crescerem felizes. E a condição sin quan non de garantir o bem-estar dos filhos é a presença e apoios financeiro e moral contínuos dos pais.
Se calhar, ambos os artistas estejam certos na sua forma de conceber a felicidade matrimonial que consiste no crescimento saudável e bem-estar das crianças. É indubitável que a separação dos pais, de modo geral, impacta negativamente no crescimento das crianças. Em termos de estatística, maior parte de casamentos falhados tem gerado filhos com sérios problemas de relações intrapessoal e interpessoal, tornando-os adultos com incapacidade de construir relacionamentos saudáveis. Este era o maior perigo que os nossos cantores da velha guarda como Avelino Mondlane, Eugénio Mucável, Gabar Mabote na sua canção Helenani” entre outros artistas nos procuravam admoestar.
Feliz ou infelizmente, estes artistas se fizeram ouvir e conseguiram influenciar casais da sua geração.
Diga-se, com franqueza, que os casamentos daquela geração comparados aos casamentos desta geração são os mais duradouros e estáveis. E não se pode ignorar o impacto que a música da velha guarda teve na construção da moral familiar. Era quase uma tradição que, aos fins-de-semana, se ouvissem dos rádios cassetes da vizinhança canções destes artistas acompanhadas de um agradável cantarolar dos pais, tios e avós. A aceitação popular deste género musical era demasiado alta, sobretudo, em zonas periféricas. E, se tivermos que lhe definir o legado, o maior de todos foi o de disciplinar e unir famílias em Moçambique.
Todavia – temos de ser honestos – o facto de os filhos daquela geração crescerem em estruturas familiares sólidas nem sempre significou harmonia e paz. Era possível, sim, registarem-se casos tóxicos como violência, infidelidade, desrespeito e autoritarismo nessas famílias. Devemos, por isso, aceitar o facto de que a música não era o único pilar que sustentava as relações duradoras. A educação para submissão feminina, a baixa escolaridade das mulheres, a pobreza e a exclusão das mulheres no mercado formal de emprego eram factores negativos que, de algum modo, obrigavam as mulheres a permanecer por mais tempo nos seus relacionamentos.
Mas, deve-se concordar que o espírito de tolerância, paciência e resiliência era tão forte que muitas famílias conseguiam superar diversas crises que ameaçavam romper o casamento. Esse espírito resiliente que fazia perdurar as relações conjugais alimentava-se, em parte, das canções moralistas da velha guarda. Mas mais do que as causas de um casamento duradouro, este artigo busca questionar o sentido do casamento. Ou seja, vale a pena suportar crises no casamento pelos filhos ou priorizar sempre a sua felicidade particular?
A resposta é complexa. A felicidade particular é importante na vida, mas ela costuma ser instável e irregular. Às vezes, confunde-se com uma paixão voluptuosa que nos leva a cometer adultério, mas que, com o tempo, se vai esvaindo. A pessoa amada pela qual abandonamos a família não deve ser tida como uma garantia eterna da nossa felicidade. Devemos levar em consideração a hipótese de, um dia, ela deixar de amar-nos, ou entediar-se de nós, zangar-se, arrepender-se, cansar-se ao ponto de desistir de nós. O amor é uma chama que, às vezes, com o tempo, perde a intensidade do seu calor ou se apaga. Abandonar, por entanto, a missão matrimonial de criar e educar os filhos dentro de uma estrutura familiar sólida por causa de uma felicidade extraconjugal afigura-se uma decisão irresponsável.
No entanto, é uma atitude estúpida permanecer numa relação tóxica que contribui negativamente no desenvolvimento biopsicossocial dos filhos e que, ainda, arrisca a sua própria integridade física e moral. Continuar no casamento pelos filhos só se torna uma decisão sensata se houver condições para um desenvolvimento saudável dos mesmos. Se estiverem estabelecidas estas condições, ainda que não perfeitas, sim, vale a pena preterir a sua felicidade particular por eles. Como progenitores, a nossa obrigação de zelar pelo-bem estar dos filhos, deve estar acima da nossa felicidade como marido e mulher. É a nossa inteira responsabilidade assumirmos o compromisso de proteger, educar e apoiar as crias que trouxemos ao mundo.
A condição de pai ou mãe solteiros não tem sido favorável para um bom crescimento das crianças. A maioria dos casos de filhos que crescem sob a custódia de pais separados tem sido uma experiência turbulenta. Uma estrutura familiar sólida sempre será o melhor estado para o desenvolvimento saudável dos filhos, desde que o ambiente não seja tóxico. Casar, formar uma família e dedicar-se ao cuidado dos filhos configura-se o melhor propósito do matrimónio – eis a mensagem que Eugénio Mucável e Avelino Mondlane insistentemente nos procuraram transmitir.