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A causa da morte de Azagaia ou a crónica sobre o “eterno vencedor das causas perdidas”

Foto: O País

Quando a notícia sobre a morte de Azagaia começou a circular, no princípio da noite de 9 de Março, houve uma série de especulações sobre o que teria causado essa fatalidade. O rapper tinha apenas 38 anos de idade e, aparentemente, gozava de boa saúde. Entre as causas da morte, a mais repetida foi: “Azagaia caiu do tecto da sua casa enquanto se encontrava a fazer trabalhos domésticos”. Ainda assim, essa tese não foi de todo “convincente” porque, na cabeça de muitos, não fazia sentido que aquele homem com vigor tivesse como causa da morte um episódio tão banal. Mas não. O rapper não caiu de nenhum tecto de casa. No dia 9 de Março, Azagaia teve uma crise de epilepsia. No quarto, onde se encontrava sozinho, sem apoio atempado, o artista caiu e sucumbiu até ao fim e, quando lá foi encontrado, já era tarde demais.

Azagaia sofria de crises epilépticas há anos. E teve várias quedas. Por isso mesmo, o rapper decidiu fazer um exame e ficou a saber que sofria de um tumor no cérebro. O preço para a operação na Índia era alto ou, pelo menos, o rapper não tinha o dinheiro que se exigia. Preço alto é relativo. Logo, familiares, amigos e admiradores juntaram-se a uma campanha de angariação de fundos por Azagaia. Em pouco tempo, o rapper consegui o valor necessário e a cirurgia foi um sucesso. Ainda assim, e mesmo estando a cumprir com a medicação clínica prescrita, continuou a ter ataques epilépticos, já que a medicação não cura, mas pode ajudar a controlar a doença.

O representante da família Da Luz, Jorge Rungo, no velório, falou de tudo isso e ainda acrescentou que Azagaia continuou a cair em locais diversos, incluindo nos estúdios, a gravar. Então, quando a crise chegou, na passada quinta-feira, o corpo de Azagaia não resistiu e, sem sequer contemplar a sua esposa e as suas princesinhas pela última vez, partiu, deixando para trás uma sociedade em choque e admirada.

Azagaia, em diferentes ocasiões, referiu-se à morte nas suas composições ou em entrevistas. Aos próximos e admiradores, inclusive, disse que, quando morresse, independentemente da causa, que os seus não chorassem, que fossem fortes e continuassem com a luta… Houve, de facto, essa tentativa de conter a dor e a angústia. Quando a urna saiu da morgue do Hospital Central de Maputo, a transmissão televisiva não conseguiu vislumbrar nenhum rosto definitivamente consternado. O cenário mudou logo à chega da viatura da agência funerária à Praça da Independência, espaço que condiz tanto com a luta do rapper pela liberdade. Ali, onde há 36 anos foi velado um dos seus ícones preferidos, Samora Machel, sim, as lágrimas mostraram aos homens e mulheres quem manda sempre que a dor chega.

A urna chegou à Praça da Independência por volta das 7 horas. Bastaram alguns passos até a urna ser colocada no lugar destinado ao velório. De forma ordeira, os cidadãos anónimos e figuras conhecidas foram, numa enorme fila, ao Paços do Município de Maputo. Ali viram um dos “reis” do Hip-Hop, que viveu na vertical, na horizontal.

A igreja também lá esteve. Dom Dinis Sengulane orientou a missa do corpo presente. E não foi por acaso, afinal, o Bispo Emérito da Diocese dos Libombos foi quem baptizou o menino Edson, que, esta terça-feira, não viu a luz do dia. Apagou-se uma luz na família Da Luz. Rigorosamente, o membro da família que, nos encontros familiares, sempre gostou de declamar ou de falar aquilo que os seus irmãos até tinha receio de dizer. Sempre foi corajoso, sempre venceu o medo, a vergonha. Foi assim em casa, foi assim na rua, foi assim na sala de aulas, foi assim nas entrevistas, foi assim a compor e a cantar, sobretudo a compor e cantar. Também por isso, enquanto decorria a missa do corpo presente, as multidões continuaram a chegar à Praça da Independência. O facto de a cerimónia estar a decorrer num meio de semana não atrapalhou em nada. Milhares de pessoas estiveram naquela praça a acompanhar a sessão fúnebre em telas gigantes. Inclusive, quando alguma intervenção no Paços do Município de Maputo assim o justificasse, lá reagiam com estrondo. Foi arrepiante! Pelo menos, durante o velório, o povo lá presente esteve no poder, desconstruindo aquela velha frase de John Lé Carré, em O fiel jardineiro: “Esta é uma terra de subentendidos. Falar claramente é uma coisa de pecadores”.

O povo não esteve nada subentendido. Claramente e incondicionalmente, cantou “Povo no poder” com os punhos no ar e não pecou. Quase ensurdecedor. Por isso, várias vezes, Hélder Leonel, o mestre-de-cerimónias que também se confunde com o Hip-Hop moçambicano, teve de pedir para as pessoas estarem mais quietas. Obedeceram, quando puderam, mas sempre se manifestaram num ambiente que, na verdade, ajudou a colorir a sessão. Aquilo pareceu mais um comício à moda antiga do que um velório: Full de gente, full de emoções, full de sentimentos e solidariedade. Com uma diferença: os viva, viva, foram substituídos por “Povo no poder”.

No exterior e no interior do Paços do Município de Maputo, Azagaia foi também recordado como um “homem bomba”, pelo amigo Nandele, em referência a um título da música do rapper; foi recordado como a voz dos oprimidos, pelos amigos Izlo H e Iveth; foi recordado como um artista que soube fiscalizar os políticos, por Adriano Nuvunga, representante da Sociedade Civil; foi recordado como um homem que contribuiu imenso pelas artes e cultura moçambicanas, pela Ministra da Cultura e Turismo. Foi mais ou menos a essa altura que entre o público ouviu-se algumas pessoas a perguntarem umas as outras se o Presidente iria ao Paços para intervir ou não. Interveio a Ministra em nome do Governo.

No velório, os pais de Azagaia não falaram. Os irmãos, Fernanda, Hélder e Jéssica, sim, falaram numa só voz, ora enaltecendo a coragem do rapper, ora expressando o amor incondicional por ele.  Mas um dos momentos mais emocionantes do velório do rapper foi quando as duas filhas leram a mensagem fúnebre. Muthema e Winile referiram-se ao pai como um acto de fé. Agradeceram os ensinamentos, a atenção e a educação como filhas disciplinadas e tementes a Deus.

Entre o amor confesso a Azagaia e as lágrimas de saudade, Rodhália Silvestre, que recentemente teve Azagaia como convidado a um concerto no Franco-Moçambicano, interpretou um número em homenagem ao rapper. A cantora disse, a certa altura, Hifambile ndota, do ronga, o varão foi-se embora.

À saída da urna do Paços do Município de Maputo, as pessoas continuavam a chegar à Praça da Independência. Todos quiseram despedir-se, e, permanentemente, o cortejo fúnebre teve de percorrer as avenidas rumo ao Cemitério de Michafutene vagarosamente. Pelo percurso, tal como no início do velório, as pessoas cantaram “Povo no poder”. Os que não puderam cantar por se encontrarem no trabalho, espreitaram pelas janelas dos prédios ou de onde foi possível.

O trânsito esteve inoperante. E as coisas complicaram-se ainda quando, nas proximidades do Ministério da Defesa e da Ponta Vermelha, a polícia apareceu com armas em punho a proibir a passagem do cortejo fúnebre. A viúva de Azagaia, Rosa, não se conteve. Saiu da viatura em que seguia e perguntou à polícia: “Que mal vos fiz, que mal voz fiz? Deixe-nos passar”. E viatura funerária passou. O povo, que deixara de estar no poder com a pressão do gás lacrimogéneo, teve de escolher outro caminho para chegar ao Cemitério de Michafutene, na Província de Maputo. Atrasados. Pelas enchentes nas ruas, a urna apenas chegou uma hora depois do previsto. O corpo de Azagaia foi sepultado por volta das 15 horas. Assim, desde 14 de Março de 2023, no Michafutene, descansa “o eterno vencedor das causas perdidas”.

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