O País – A verdade como notícia

Safira, Maria rapaz

Edna Matavel

 

Safira, Maria rapaz. Geração de homossexuais que assistimos. Assim fui apelidada no bairro.

Ainda pequena, costumava jogar à bola e berlindes na praça com os meninos. Ademais, em alguns campeonatos de futebol eu carregava à bola e dava o primeiro toque. Eu estava rodeada de meninos e a minha mãe, na maior naturalidade deixava-me brincar com eles, enquanto pelas costas, as vizinhas faziam comentários desnecessários, dizendo que um dia o meu comportamento teria consequências devastadoras.

Cresci brincando também com o meu irmão Rachid. Para mim, as brincadeiras das meninas eram sem graça e mesquinhas. Eu queria uma vida exacerbada e cheia de acção quanto a dos meninos. Comecei a sentir uma florescente atracção pelas coisas masculinas, o que passou a incomodar a minha mãe.

Tomava banho com o Rachid, e questionei o motivo de não ter o mesmo órgão genital masculino. Sentia um desejo enorme de possuir aquele órgão.

Quando completei os meus 17 anos de idade, comecei a envergar-me diferente do que era comum na qualidade de menina. Comecei a usar cortes a rigor típicos dos rapazes. Os meus amigos começaram a chamar-me “brô, djô” e trocávamos impressões como se de um homem realmente eu me tratasse. A minha dicção passou por metamorfose espontânea. Nas minhas férias, visitava as minhas primas e, durante a noite, acordava e apreciava-as passando as minhas mãos pelas suas partes íntimas. Admirada em ver a forma como se atraíam pelos rapazes, pesquisei se era possível trocar o meu órgão genital. De todas vezes que elas se trocavam diante de mim, sentia o meu corpo em comunicação com algo oculto, afinal de contas eram as tais hormonas a libertarem-se com uma profunda intensidade.

Conheci um grupo de amigos gays, que me apresentaram pessoas com as mesmas características que as minhas. Essas lésbicas despertaram o meu verdadeiro eu, incentivaram-me a assumir a minha homossexualidade. Quando finalmente decidi tirar a dúvida que jazia no coração da minha mãe e mostrar que era lésbica, a vergonha e o desprezo falaram mais alto ao ponto de me fazer escolher entre seguir com o caminho da homossexualidade ou continuar morando com ela. Senti na pele a dor da rejeição. O meu irmão ficou desapontado, os seus amigos zombavam dele por me ter como irmã, e ele dizia que eu era um erro cronológico (nossos ancestrais).

Frustrada pela forma como era discriminada, enveredei abusivamente no mundo do álcool, parei de frequentar a igreja porque olhavam para mim como a que infringia todas as regras da doutrina de Cristo. Comecei a andar com amigos viciados, o que me tornou em uma. Saía às primeiras horas de sexta-feira e só regressava ao final do dia de domingo, o que levou a minha mãe a marcar um encontro com os meus tios.

Proibiram-me de frequentar bares, mas o meu sangue circulava na veia toda vez que recebia uma mensagem dos meus amigos para curtir, eram os únicos que me apoiavam sem discriminação. O meus tios surpreenderam-me num dia em que cheguei à casa bem cedo e embriagada. Bateram-me ainda no portão como se estivessem a bater num homem, era a única forma que encontraram de me fazer mudar. Fiquei três dias sem sair de casa. Os meus amigos me encorajaram a seguir os meus instintos masculinos, fazendo-me acreditar que a minha família acabaria aceitando. Quando convalesci, voltei a má vida. Frustrada com o desprezo da minha família, comecei a usar drogas, o que só piorou o meu comportamento.

De todas as vezes que a minha mãe trancava a porta para mim, entrava pela janela do quarto ou passava a noite na capoeira com as galinhas. Tristeza para ela. Eu já não queria ser chamada Safira e, sim Safir, para dar sentido à minha personalidade.

Consegui um emprego e comecei a ganhar dinheirinho. Entretanto, o salário acabava em baladas, pagando rodadas para as mulheres que lá me atraíam. Em casa, mal conheciam o meu salário.

Num sábado, enquanto estava sob efeito da droga, levei a minha namorada para casa. A minha mãe insultou-me e eu a espanquei de forma brutal, porque não aceitava as minhas escolhas. No mesmo instante, ela apanhou AVC e eu lutava sempre com o Rachid. A minha vida presumia-se em estupefacientes e a minha arrogância fazia-me enxergar a minha família como um obstáculo.

Outro dia, as vizinhas levaram a minha mãe até ao bar onde me encontrava para ver de perto o que acontecia. Ficou traumatizada em ver a forma como os meus amigos gays empinavam a bunda mais do que as próprias mulheres que lá haviam, enquanto eu trocava intimidade com uma moça dentro de um carro. Foi aí que a minha mãe e o meu irmão decidiram sair de casa, e passei a morar sozinha. Tive a liberdade de fazer as minhas vontades. A minha casa virou abrigo de homossexuais. Todos os finais de semana haviam grandes festas. A casa estremecia com o barulho que se fazia sentir. Parecia um bordel.

Em uma noite de quinta-feira, voltando do trabalho, numa esquina sem iluminação, deparei-me com três homens mascarados. Fizeram uma roda, deram gargalhadas de gozo, e disseram então é a Maria rapaz. Espancaram-me e em seguida abusaram-me sexualmente, cada um à sua maneira, e, depois de terminarem o serviço, cuspiram-me o semblante. Não sei como cheguei a casa, só me lembro de ter aberto os olhos na minha cama com a minha namorada cuidando de mim. Tive de procurar ajuda médica, sofria algumas alterações com o decorrer dos dias, fiz exames de sangue dos quais descobri que estava grávida e tinha AIDS, fiquei desesperada e sem saber como contar à minha parceira. Quando ela teve conhecimento, separou-se de mim.

Tentei fazer aborto, mas não deu certo, passei dias de angústia e fiquei dois meses em depressão. Sentia vergonha de mim mesma, de estar em contacto com as pessoas. Banho tomava duas vezes a cada semana. Estava prestes a dar à luz e o mais doloroso é que desconhecia a paternidade da criança.

A minha mãe teve conhecimento e mesmo assim ficou indiferente. Ela falou com os meus tios e eles procuraram um médico tradicional para cuidar de mim. Julgavam que tinha problemas espirituais. Senti-me sem vida, um animal de estimação deambulando sem destino.

Meses depois do parto, levei a criança a um orfanato. Eu não me identificava com a maternidade. Voltei à vida de lésbica. Andei com mulheres diferentes das quais escondia que tinha AIDS. Achei que estivesse a curtir a vida, mas a vida estava a curtir-me. Parei de medicar para me afundar nas drogas. A minha depressão fez-me acreditar que estava bem enquanto me arruinava interiormente.

A minha mãe sempre foi vítima. As pessoas faziam questão de contar o que eu fazia e deixava de fazer. Depois de muito tempo, ela ligou-me a pedir que mudasse a minha conduta de vida porque eu a matava lentamente, eu não consenti e fui brutal com ela.

Dois meses depois, ela perdeu a vida e aí começou a minha grande depressão…

 

 

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