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Carta ao Luís Bernardo Honwana

Por ocasião do seu 80° aniversário

Teodato Hunguana

 

Meu caro Luís,

O José dos Remédios tirou-me do sossego ao convidar-me de surpresa para falar de ti por ocasião dos 80 anos de vida que agora completas. Tenho a agradecer-lhe a compreensão que mostrou quando lhe expliquei as razões por que não me seria fácil aceitar tal compromisso, mas também as que me tornavam muito difícil não aceitar. Pedi-lhe que me desse tempo para responder, isto há mais de um mês atrás. A razão ou razões da minha hesitação resumiam-se simplesmente ao seguinte: falar de que Luís? …do escritor?… para isso estão aí tantos dos seus confrades que o podem fazer com mérito, arte e engenho, que estão bem longe do meu alcance! Do cidadão, do político, do compatriota?… embora muitos dos seus companheiros de luta, dos difíceis tempos da clandestinidade e das masmorras da PIDE/DGS, já não estejam connosco, alguns ainda sobrevivem, e estes poderiam sempre prestar depoimento mais profundo, mais conhecedor, do que eu, que só a partir dos anos de Lisboa tive oportunidade de conviver mais de perto, contigo e com a Suzete.

A questão que se me colocava era de como abordar ou falar de algum facto ou aspecto que tivesse particular significado, não só para mim, já que se trata de partilhar num depoimento, mas que pudesse ter algum «valor acrescentado» ao que se conhece de ti como homem, concidadão, nosso irmão e companheiro de tantas jornadas. Depois de muito pensar, de quase uma revisitação ao tempo transcorrido desde a Independência Nacional, ancorei num episódio que haveria de ficar gravado na minha memória para sempre. Afinal, era o que precisava para os efeitos de um breve depoimento como este: apenas de um episódio significativo.

Um episódio que se situa num tempo da tua vida que poucos conhecem, em virtude da natureza delicada das funções que então exercias junto do Presidente Samora. Mas um episódio que teve a particularidade de nos conectar numa situação dramática, a ti, ao Presidente e a mim, então recém-nomeado Ministro da Informação.

Naquele tempo, em 1986, estando o Presidente de férias com a família no Bilene, chamou-me para me ouvir sobre alguns problemas da minha vida pessoal a que ele não permanecera indiferente. No fim da conversa, e na perspectiva de se criar um ambiente propício para a solução daqueles problemas, solicitei ao Presidente que, pelo menos por uns tempos, me afastasse de Maputo, dentro ou fora do País. O Presidente disse compreender as razões do meu pedido e que iria decidir aquando do seu regresso a Maputo.

Aconteceu porém que, algum tempo após o seu regresso a Maputo, e no âmbito de uma ampla remodelação governamental, ouço pela RM que fora nomeado como Ministro da Informação. Obviamente, isso constituiu uma surpresa e um sério choque para mim, em função do que era a minha expectativa depois da conversa na praia do Bilene. O choque afectou-me de tal maneira que na manhã do dia da tomada de posse eu tive que ir ver os médicos (na brigada de médicos cubanos, na Clínica do Clube Militar, que assistia os membros do Conselho de Ministros) os quais, depois de me observarem, foram claros a recomendar que eu ficasse recolhido em absoluto repouso porque não estava em condições de ir tomar posse no estado em que me encontrava. Comuniquei ao Protocolo de Estado sobre o meu estado de saúde e sobre a recomendação médica. E fiquei em casa conforme recomendado.

Importa referir que a mudança em relação à conversa do Bilene, soube-o eu depois, ficara a dever-se ao que alguns colegas tinham ido depositar nos ouvidos do Presidente, insinuando que o meu pedido, de ser afastado de Maputo, não era senão manifestação da história a que tinham dado voz, anos antes, num outro contexto crítico do meu desempenho ministerial, história segundo a qual eu «andaria com um pé dentro e outro fora». Então, e muito como efeito dessa história, o Presidente nomeou-me Ministro da Informação, pois assim se frustraria o que era suposto ser a minha presumida obscura intenção de «saltar fora».

Quando no dia marcado para a tomada de posse de todos os incluídos na remodelação (de entre ministros e governadores), em virtude do meu estado de saúde, não me fiz presente, os mesmos colegas terão dito ao Presidente que isso era já manifestação de grave indisciplina, rebeldia ou desobediência, no que denunciavam como recusa de assumir o novo cargo.

Face a este ambiente gerado à minha volta, o Presidente teria então mandado destacar uma força para ir proceder à minha imediata detenção.

Foi nessas circunstâncias que o Luís, porque conhecendo-me como me conhecia, e trabalhando directamente com o Presidente, usou da sua capacidade de persuasão, dos seus dotes de ponderação e de domínio de linguagem apropriada para uma situação tão delicada, dominada pelo nervosismo, tensão, e imperativo de se «dar uma lição» a um presumido rebelde indisciplinado, o Luís conseguiu amainar os ânimos e levar o Presidente a recuar da ordem de detenção.

De todo este imbróglio, isto é, do que ocorreu como consequência da minha ausência à tomada de posse, ausência que, repito, supunha devidamente justificada, eu só tomei conhecimento muitos meses depois, muito depois de entretanto ter tomado posse como Ministro da Informação. E muito mesmo depois de Mbuzine.

 Então qual a relevância de estar a resgatar esta história de há 36 anos atrás, neste breve depoimento sobre o meu amigo Luís? Qual a moral desta história?

Três factos a reter:

– Primeiro, o que me diz respeito directamente, que é o facto de ter sido salvo, embora sem o saber, de ser vítima de uma sanção, não só injusta mas cuja execução poderia ter sido de consequências imprevisíveis, quiçá irreversíveis;

– Segundo, no que diz respeito ao Presidente, o facto (sobremaneira importante para um dirigente, para um líder) de que o livrou de cometer a injustiça à qual fora erroneamente induzido;

– Finalmente, e certamente o mais importante, foi o próprio facto da intercessão para evitar que se cometesse um erro, uma injustiça, e por via disso, salvar a vítima dessa injustiça. Esta intercessão ficou a dever-se à hombridade, serenidade, e capacidade de persuasão do Luís Bernardo. Porque o Luís não fez aquele papel, que tão bem conhecemos, de dizer ao chefe o que o chefe gosta de ouvir, mas assumiu o risco de dizer algo que ia mesmo em sentido contrário à decisão do chefe, mas que era o necessário, e de justiça, o chefe ouvir.

E esta é a moral desta história, moral intemporal, a moral dos valores e princípios que devem consubstanciar o sentido de serviço público, a qualquer nível, mas sobretudo aos níveis mais elevados, como era aquele em que o Luís servia o Estado naquele tempo.

Não vou terminar o meu depoimento sem dizer agora o que nunca disse ao Luís, até porque não mais voltamos a falar desta história… então dizer simplesmente: Obrigado Luís por tudo o que isso significou para mim, mas obrigado sobretudo pela lição que esse episódio encerra. É essa lição de vida que justifica que eu resgate o episódio, hoje, passados 36 anos, em celebração dos teus 80 anos.

Matola, 30 de Outubro de 2022.

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