Por: Agnaldo Bata
« A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda” Mia Couto, o Ultimo voo do flamingo
“Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. – Karl Marx
A excelente obra de arte, que é a peça teatral “Incêndios”, está em tournée pela França desde os finais do mês de Junho passado. Encenada pelo português Vitor Oliveira, e com um rol de actores e assistentes moçambicanos, a peça, que foi talhada até aos mínimos detalhes fazendo-a atingir um grau de perfeição incomum no cenário dramatúrgico moçambicano, retrata a história de Nawal Marwan, esplendidamente representada, em diferentes momentos da sua vida, pelas actrizes Sufaida Moiane, Jossefina Massango e Ana Magaia. Esta mulher, que passou os últimos 10 anos da sua vida em silêncio absoluto, deixa, junto do seu testamento, duas cartas para os seus filhos gémeos Joana (Rita Couto) e Simeão (Bruno Huca). Acompanhada à carta, está uma ordem que é transmitida ao executor do testamento, Emílio Jubela (Alberto Magassela) segundo a qual os irmãos gémeos devem entregar as cartas nas mãos do seu pai, que julgavam-no morto, e do seu irmão, que não sabiam que existia.
Movidos pelo último desejo da mãe, os dois irmãos gémeos partem numa desenfreada busca pela verdade, o que os obriga a escavarem o passado da mãe e a exumarem fantasmas que aparentemente tinham já sido exorcizados pela história. Nessa busca, os dois irmãos descobrem que a sua mãe, Nawal, teve um filho quando mais jovem e foi obrigada a entrega-lo para a adopção. Anos mais tarde, durante a guerra civil que eclodiu no país, ela parte, na companhia da sua amiga Sawdwa (Eunice Mandlate) a busca do seu filho que já deveria ser maior de idade. Nessa procura, Nawal envolve-se em actividades revolucionárias e acaba presa e sucessivamente violada por um guarda (Horácio Guiamba). Conhecida como “a mulher que canta”, Nawal engravida do seu captor e dá à luz a um casal de gémeos. Quando a guerra chegou ao fim, Nawal encontra-se cara a cara com o pai dos seus filhos que por sua vez reconhece os crimes cometidos durante a guerra e revela que foi abandonado pelos seus pais quando era menor, tendo, por isso, a vida tornando-o um sanguinário e violador devido a falta do amor familiar. Ao se dar conta que o pai dos seus filhos gémeos é o seu filho mais velho, Nawal faz um voto de silêncio absoluto que não foi quebrado até ao dia da sua morte.
O texto original é de Wajdi Mouawad, um dramaturgo libanês e foi escrito pensando no contexto sócio histórico do Líbano. Não é preciso ser um génio para perceber que esta peça teatral perpassa o contexto libanês e representa a realidade de vários outros contextos, inclusive o da perola do índico, como se de uma repetição trágica da realidade se tratasse. Foi o pensamento que invadiu-me a mente durante as três horas que permaneci no meio daquela gigante sala de teatro na região parisiense por onde a tournée passou no início do mês de Julho, com mais de trezentos espectadores que desfrutavam da reabertura das salas de teatro depois de cerca de oito meses de encerramento: a repetição da tragédia.
Esta nova tournée da peça teatral “incêndios” acontece num momento em que o país é confrontado por um conjunto de fantasmas que, aparentemente, teriam ficado enterrados no passado, mas, como o terá advertido Marx ao referenciar-se ao seu companheiro Hegel, a história repete-se, primeiro como tragédia e depois como farsa. Oficialmente em Moçambique a guerra civil terminou com os acordos de Paz de 1992, mas continuamos, quase 30 anos depois, a verificar repetidos episódios de violência civil no centro do país. No extremo norte temos Cabo Delgado, em “chamas” onde reina uma incerteza dos vários concidadãos que residem e trabalhavam nessa circunscrição geográfica. Quantas Nawals estarão por lá agora neste momento sendo violadas?
Provavelmente não saberíamos responder, ninguém saberia, ninguém parece saber o que se passa por lá, mas temos indícios do que pode estar a se passar em algumas regiões onde supostamente a paz reina. As instruendas em Matalane, grávidas dos seus instrutores, as encarceradas do Centro Penitenciário de Ndlavela que são submetidas a um esquema de exploração sexual, a menina de 14 anos que, recentemente, deu à luz a um bebé cujo pai é, certamente, um homem maior de idade, a menina de 13 anos que se encontrava a residir com um homem de 41 anos a quem chamava de marido, as menores violadas nos arredores dos estaleiros das construção civil nas províncias de Nampula e Zambézia. Estes são apenas os factos que vieram recentemente ao público. Quantos outros tantos estarão sendo escondidos pelos comités de resolução de problemas familiares ou pelo silêncio a que muitas raparigas, rapazes, homens e mulheres em situação vulnerável estão impingidos?
No julgamento, Narwal, frente a frente ao seu captor diz “talvez o meu nome não te diga nada. Eu sou a puta da cela 71”. Até parece propositado ou uma adaptação tendo em conta as recentes notícias vindas do centro penitenciário de Ndlavela. Mas não é. A peça estreou em 2019 e já carregava este texto. Já é farsa ou ainda é a tragédia? Não sei. Marx disse que na segunda vez já é farsa, mas em Moçambique, a violação das mulheres parece repetir-se constantemente como uma pura tragédia e ninguém coloca a mão pesada para travar a sua repetição cíclica. Parece.
Rever “incêndios” no actual contexto nacional, com a sua fina produção, marcada por representações de alto nível e um jogo de luzes e efeitos sonoros espetaculares, constitui uma oportunidade para reflectirmos sobre como, em micro-sociedades, temos construído os nossos violadores e até que ponto eles atentam contra a vida e a dignidade do “outro”. Talvez estejamos a espera que a tragédia atinja as proporções em que o filho engravida a própria a mãe, como foi no caso de Nawal, onde o pai é o irmão mais velho dos próprios filhos. E corremos este risco sem estarmos oficialmente em guerra. Ou talvez seja como escreveu Mia Couto “a guerra nunca partiu” e as violações também.
Agnaldo BATA
Título da peça: Incêndios
Ano: 2009
Encenador: Victor Oliveira
Duração: 3h 30Min.
Actores que actuaram na tourné pela França: Bruno Huca, Elliot Alex, Teresa Coutinho, Horacio Guiamba, Alberto Magassela, Ana Magaia, Josefina Massango, Eunice Mandlate, Sufaida Moyane, Klemente Tsamba.
Música: Nadele Maguina.