Era um dos destaques, nas estantes de uma livraria, da Cidade do Cabo, e o nome em letras brancas sobre a capa preta, à distância da minha miopia, pareceu-me familiar: Moira Forjaz. O título, por baixo, Mozambique 1975/1985 (edição: Fanele, 2015, Joanesburgo). A fotografia, belíssima, de uma jovem moçambicana, inclinada ao ritmo da dança. Os primeiros dez anos da Independência. Comprei-o com entusiasmo. Isto foi em Junho do ano passado. Sorri para o facto de adquirir esta obra naquele mês emblemático e fui para casa com urgência. Fiquei, confesso, nostálgico da revolução. Hoje, bem sei, essa palavra, esse vocábulo, encontra-se dissoluto. Os seus arautos procrastinaram-na. Já ninguém se lhe refere. As suas personagens e os seus protagonistas parecem ter ou sofrer de uma amnésia que impende sobre eles e sobre aquela época. Estas imagens, estas fotografias, devolveram-me esse tempo singular da nossa história. Tenho dito – e faço quezília nisso – que o tempo histórico que vivemos não deve estar refém do proselitismo que é hábito praticar, entre nós. Mas também deve ser arredado do silêncio a que, por oposição, é votado. Temos de encontrar a dose certa entre a grandiloquência que, por vezes, queremos que a história tenha sido ou tido e o relato comedido e apaziguado de um tempo decisivo.
Mozambique 1975/1985, de Moira Forjaz, dedicado a Samora Machel e a Ruth First, é um documento histórico e sociológico dos primeiros dez anos da vida de Moçambique independente. Samora Machel marcou indelevelmente esta primeira década do país. Não é possível fazer-se uma iconografia dos anos da revolução ignorando Samora – para o bem e para o mal. Os primeiros anos da Independência são marcados pela sua figura exuberante e omnipresente. Moira esteve perto dele e fotografou-o soberbamente, como fotografou Graça Machel e outras/outros protagonistas ou figurantes da História recente, que nos parece, pelas transformações que, entretanto, se operaram no país, longínqua. Estas fotografias, para mim inéditas, são impressivas. Há aqui um tempo que foi o nosso – um tempo colectivo – que se esfumou. Há aqui uma época que agora escorre nas paredes melancólicas da memória. Tempo e história que revisito nas páginas deste soberbo livro.
Foi Barney Simon (1932-1995), um escritor e encenador e ativista sul-africano, que apresentou, num clube de jazz de Hilbrow, a jovem Moira de 20 anos a Ruth First, nos anos 60, de quem seria uma das suas maiores amigas. Moira, nascida a 17 de Abril de 1942, em Bulawayo, provinha de famílias russas oriundas de Riga e irlandesas provenientes de Country Cork. Forjaz foi apelido que lhe adveio do casamento. First, que se tornaria ícone da luta anti-apartheid, seria vítima com uma carta-bomba a 17 de Agosto de 1982, aos 57 anos. (Esta data, 17 de Agosto de 1982, é importante para a minha mitologia pessoal. Foi naquele dia e por causa daquele bárbaro acontecimento que comecei a escrever. Tinha 15 anos e aconteciam-me os primeiros versos dedicados à Ruth First, que eu não conheci, mas cujo sacrifício tanto me impressionou.) Ela era também mulher de outro nome icónico da luta anti-apartheid, Joe Slovo, que tem uma rua em Moçambique, e que chegou a ministro de Mandela. Morreu em 1995. Viveu e lutou também em Moçambique. Num bairro periférico (Langa) da Cidade do Cabo, onde se erguem casas sociais, há uma delas onde se grafitou a imagem de Slovo. Uma bela homenagem. Foi ele que iniciou o ambicioso programa da habitação social na África do Sul.
Alf Kumalo (1930-2012) foi um fotógrafo documentalista e um fotojornalista importante na África do Sul. Documentou a história da luta anti-apartheid. Tem uma brilhante imagem de Nelson Mandela e Ruth First, antes da prisão do primeiro e do exílio forçado da segunda. Ruth First foi uma intrépida activista da luta contra o apartheid, uma importante jornalista e uma brilhante socióloga e está na origem de estudos incontornáveis nesse domínio entre nós. O trabalho dela no Centro de Estudos Africanos é importantíssimo.
Ouvi falar da Moira, pela primeira vez, nos anos 80. Foi através de um livro de fotografias sobre a Ilha de Moçambique. Eu demandava, na época, a mitologia poética da Ilha. Conheci-a pessoalmente em Lisboa numa galeria de arte. Fotógrafa, curadora de arte, produtora de festivais de música, fomo-nos cruzando ao longo dos tempos, entre exposições e concertos. Recentemente, é curioso, a Ilha voltaria a ser pretexto para admirar o seu trabalho. Curei recentemente uma exposição sobre Muipiti no Camões – “A Ilha dos Poetas” – onde avultam belíssimas fotografias da Moira, entre as quais a imagem de cartaz da mesma. Quando recebi as fotografias exultei, de tão belas e impressivas que eram.
Este livro começa justamente com fotografias da Ilha de Moçambique. Um texto de Jens Hougaard, como sucederá noutros capítulos, faz o enquadramento antes das imagens. A cidade de pedra, a cidade de macuti, aqui estão estas imagens incrustadas no tempo, num tempo sublimado no rosto destas mulheres, desses miúdos, na vista de mar para o continente, no homem que constrói o seu barco, dhow, na rede de pesca de bambu, no maulide, ou na exuberante teta de uma jovem que amamenta em plena maré baixa, com o recorte da ponte, em segundo plano.
“People” (povo) é o segundo capítulo: Samora Machel, Marcelino dos Santos e o rosto cortado de Oliver Tambo. Agostinho Neto em visita a Moçambique, ele e Graça Machel. Samora, Luís Bernardo Honwana e José Forjaz, que foi casado com Moira. Samora com microfones diante de si e aquele sorriso arrebatador. Graça Machel a dançar em apoteose com as mamanas da OMM, Graça fardada acolhida em Chilembene, terra de Samora. Ruth e os seus colaboradores em Metocheria, em Nampula, aquando do projecto “Algodão”.
Sucessivamente: Oliver Tambo, Janet Mondlane, Pamela dos Santos, Samora e Canaan Banana, que foi o primeiro presidente do Zimbabwe (entre Samora e a sua tradutora oficial Zita Costa), Samora de mãos dadas com Joshua Nkomo e Roberto Mugabe, num palco em Harare, Joe Slovo (belíssima imagem: vencido pelo sono no sofá, com charuto entre os dedos e um gato no colo), Barney Simon, escritor e encenador, António Quadros (João Pedro Grabato Dias/Mutimati Barnabé João), Ricardo Rangel, Funcho (João Costa) a filmar miúdos colhidos de espanto, Jean-Luc Godard, o célebre cineasta, que esteve em Moçambique a colaborar na formação de novos cineastas. Jovens ginastas. Um velho leitor de jornais no Continental. Uma mulher em Boane. Um trabalhador da construção civil: na transformação de um cinema em palácio de congressos. Samora, Samora, Samora. Jovens. O povo a ouvir o Presidente.
O terceiro capítulo “Mine Workers” (Mineiros). Ruth First dirigiu um projecto de pesquisa muito importante, no Centro de Estudos Africanos, que resultou na obra O Mineiro Moçambicano. Aqui há uma clara ligação entre Moçambique e África do Sul, como aliás este livro subscreve. Esta época já não existe, este documento é impressionante. Alpheus Manghezi escreve sobre os migrantes para as minas da África do Sul. Um poema pungente de Gouveia Lemos sobre a vida agónica dos mineiros. Esta iconografia dos trabalhadores moçambicanos nas minas, vulgo Magaizas, é um documento sociológico imprescindível para o entendimento e conhecimento de um capítulo relevante da história de Moçambique e da África do Sul. Ainda hoje ouvi “Stimela”, a vibrante música do Hugh Masekela, que fazia a evocação destes mineiros oriundos dos países da Africa Austral para as as minas da África do Sul.
“The Wives” (Esposas), como sequência, do capítulo anterior, preenche o quarto. É o reverso da vida dos mineiros. As crianças e as mulheres que estão do outro lado da fronteira. As famílias dos mineiros. As crianças que deixam e as crianças que encontram. É um contra-ponto interessante.
O quinto capítulo “Cotton” (Algodão) documenta outro trabalho do CEA e de Ruth First em Nampula, Metocheria. Bridget O´Laughlin escreve sobre este trabalho realizado em 1979. Segue-se-lhe “Coal Miners” sobre os mineiros de Moatize, o qual reporta um acidente, de 2 de Agosto de 1977. Paola Rolleta faz o enquadramento deste acontecimento.: Kok Nam, célebre fotógrafo que fora para lá enviado para reportar o desastre, é aqui fotografado.
O livro encerra com “Music” (Musica). A fotografia de capa, aliás belíssima, abre este sexto capítulo. José Fonseca e Costa (1933-2015) realizador do filme Música, Moçambique, que documenta um memorável festival de música e dança tradicional, conta com Moira Forjaz como assistente de realização e faz o depoimento do momento histórico que vive e documenta. Neste festival foi convidada Miriam Makeba que cantará para Samora Machel: “Moçambique – a luta continua”. Cabem neste capítulo Miriam Makeba e a mitologia cultural de um povo, cabem nele executantes anónimos, cabe nele Samora. Sobre Samora depõe impressivamente Óscar Monteiro; Albie Sachs, alvo de ataque bombista em Maputo, faz a memória sentida de Ruth First; Luís Bernardo Honwana e Hilary Hamburguer, ambos amigos de longa da data da Moira, falam da amiga e do seu percurso, do seu notável trabalho, do documento história de uma época, da história de quem esteve na Linha da Frente.
Moira narra o seu longo excurso, desde Bulawayo, passando por Joanesburgo, nos anos 60, por Moçambique (64), Portugal (65 e 66), Londres (65), Nova Iorque (67/68), Swazilândia (68 e Abril de 74), Moçambique (74), com destaques para Marromeu (78), Maputo (em 81, no festival de música e dança tradicional), Maputo em 82, o ano da morte de Ruh First, e Portugal em 86, o ano que em que Samora Machel soçobra em Mbuzini. Esta cronologia comentada é profusamente documentada com imagens pessoais sobretudo.
Mozambique 1975/1985: 244 páginas. Testemunho a favor de Moçambique, a primeira década da sua Independência. Cartografia de um tempo que desapareceu. Imagens belíssimas, documento histórico e sociológico: património afectivo. Primeiro rascunho da História. Aqui se cruzam, na sua grandeza e na sua miséria, Moçambique e a África do Sul e todo manancial de história comum que persistimos em iludir. De Samora Machel a Ruth First, passando por Oliver Tambo ou Joe Slovo. Instantes decisivos. Belíssimas fotografias a preto e branco. Aqui conta-se também o percurso de uma nação, de um país e de um povo. Sem proselitismos, nem grandiloquências.