A morte faz parte do quotidiano de cada um de nós. É o momento onde se quebram as ligações entre os vivos e os mortos, mas é ainda um episódio que acarreta vários custos.
Constantemente assistimos a cenários em que várias famílias ficam obrigadas a abandonar os seus familiares na morgue dos hospitais por não reunirem condições para custear uma cerimónia fúnebre. E como resultado os seus entes queridos são enterrados na vala comum sem nenhuma cerimónia condigna.
Mas esta realidade pode ter uma explicação. Segundo ficamos a saber, o preço mais barato para aquisição de uma urna nas agências funerárias locais é de 3,500,00 sendo que a mais cara ronda os 150,000,00. Em termos práticos um cidadão que aufere o salário mínimo conseguiria comprar apenas o caixão, sem incluir com os custos de transporte, espaço para realização de funeral e alimentação para os participantes. Mas a aquisição de uma urna é apenas o início de um processo que se torna num verdadeiro martírio para várias famílias moçambicanas, em particular as mais carenciadas.
Quatro mil e quinhentos meticais impediram a realização de um enterro condigno
A nossa fonte preferiu falar em anonimato. Vamos chamá-lo de João. “O País” abordou-o naquele recinto sediado no bairro Luís Cabral, em Maputo, enquanto caminhava a passos lentos de forma tímida entre uma imensidão de campas com flores a mão para prestar uma simbólica homenagem à sua amada. É que João não reunia as condições necessárias para oferecer um enterro condigno a sua parceira.
Segundo conta, a esposa adoeceu e três meses depois tombou no leito do seu lar após recorrer a vários tratamentos, dentre os quais a medicina tradicional. O pai de três filhos e vendedor ambulante refere que gastou tudo e até o que não tinha antes mesmo da sua parceira perder a vida. “Procurei por ajuda em todos os cantos para poder dar um enterro condigno, mas foi em vão”, desabafou.
Eram necessários quatro mil e quinhentos meticais para aquisição da urna, sem incluir com o valor para as restantes despesas funerárias.
Hoje se tornou num homem de poucas palavras, aliás recordar aquele episódio é para si sinonimo de dor e muita tristeza.
“É duro e desconfortável recordar aquele momento, as minhas filhas não puderam assistir ao sepulmento da sua mãe e nem mesmo onde os seus restos mortais descansam”, avançou.
A nossa fonte revelou ainda que recorreu aos serviços funerários municipais, mas a resposta tardou a chegar, uma vez que o acesso ao mesmo segue um processo burocrático. Entre os documentos exigidos pelo Conselho Municipal constam: atestado de pobreza, documento que prove que é residente no município e um boletim de óbito.
Vala-comum: Um recurso para os mais carenciados
Num percurso de um quilómetro entre a entrada principal do cemitério Municipal de Lhanguene e o murro que separa as residências do bairro Luís Cabral procede-se aos enterros na vala comum.
São restos mortais provenientes de quatro hospitais da capital do país, nomeadamente Hospital Central de Maputo, Hospital Geral de Mavalane, Hospital Geral José Macamo e Hospital Geral da Machava, este último localizado no município da Matola. Os cadáveres não identificados, em conjunto, e não reclamados, são enterrados sem recurso a nenhuma cerimónia.
A recolha dos corpos é feita todas as quartas e sextas-feiras por uma viatura pertencente ao Conselho Municipal de Maputo.
Apesar dos esforços empreendidos por parte da edilidade o número de corpos que vai parar a vala-comum ainda preocupa as autoridades.
Segundo dados do Conselho Municipal de Maputo, nos últimos dois anos cerca de três mil pessoas foram enterradas na vala comum. Só nos primeiros três meses deste ano mais de trezentas tiveram o mesmo destino.
O Administrador do cemitério de Lhanguene, Horácio Facitela, reconhece as dificuldades e coloca como principais razões a incapacidade das famílias em custear com as despesas funerárias bem como os elevados índices da mortalidade infantil. “Este é um problema que já vem há anos, mas as soluções em torno do mesmo tardam a surgir devido aos custos para implementar um serviço eficaz aos citadinos”, frisou Facitela.
Um outro problema prende-se com as condições precárias que a única viatura usada para o transporte dos corpos à vala comum se apresenta. Há mais de dez anos que a mesma já devia ter saído de circulação, no entanto a escassez de recursos financeiros impugna a aquisição de uma nova viatura.
Segundo relatos, várias são as vezes que a viatura avaria em plena via pública. Uma realidade do conhecimento da edilidade local. Dois milhões de meticais seria o valor necessário para compra de uma viatura que responda às preocupações dos munícipes.
“O problema já foi relatado por várias vezes ao nível da Assembleia Municipal, mas infelizmente nada foi feito, uma vez que a edilidade não reúne condições financeiras para a compra de uma viatura adequada, referiu Viriato Munguambe, Porta-voz da Assembleia Municipal. Este fez saber ainda que neste quinquénio aquele órgão não debateu em nenhuma das suas sessões aspectos ligados aos serviços prestados pelo município.
“Viver da morte”
Na capital do país assiste-se a um processo emergente de aparição de agências funerárias espalhadas pelos vários cantos da urbe. Cerca de vinte agências perfazem esta lista. Um crescimento que é acompanhado por um mercado desleal.
Samuel Banze é um dos proprietários de uma agência funerária. Abraçou a profissão quando viu o seu progenitor ser sepultado de forma desumana. Na sua agência encontramos homens e mulheres que se impõem para garantir uma moradia condigna aos mortos. Uma variedade de urnas preenchia o local, dentre as mais glamorosas e as mais simples apontadas como as de baixo custo e para os mais carenciados.
A nossa fonte refere que actualmente sente a queda na venda das urnas devido à aparição de agências clandestinas. Antigamente fazia, em média, entre dez e quinze caixões. Actualmente são apenas três a quatro caixões.
Apesar desta redução, Banze não deixa de lado o seu lado humano.
“É preciso ter noção que este não é um negócio igual aos outros, portanto é preciso que cada um de nós trate com carinho os nossos clientes, pois é momento de dor para estes”, desabafou Banze.
Quem também se mostra indignado com esta situação é Manuel Camejo. Há mais de vinte anos nesta carreira a nossa fonte aponta o dedo ao município pelo facto de não actuar contra os clandestinos. “Somos obrigados a pagar o imposto mensalmente, mas há quem introduz-se num mercado sem estes requisitos, a maioria deles nem escritórios para o exercício da actividade tem”, relatou Camejo.
“A resposta ineficaz da edilidade”
Hélder Muando, Director de Saúde e Acção Social no Município de Maputo, lamentou o facto da morgue não proceder a uma rotatividade na recepção dos corpos, o que, de algum modo, contribui para que haja enchentes naquele local.
Consciente que o número de corpos que vai para a vala comum é chocante, em 2012 o município avançou com a proposta para a criação de uma agência funerária para enterrar os mais carentes gratuitamente.
Implementado a mais de três anos, o serviço funerário municipal assiste apenas crianças e adolescentes sendo que os adultos continuam a sua mercê. De 2015 a esta parte aquela instituição assistiu 65 munícipes em caixões de baixo custo e na realização de funerais condignos. Números considerados ainda bastante baixos.
“Ainda não estamos satisfeitos com os nossos serviços, uma vez que continuamos a assistir a situações lamentáveis no cemitério de Lhanguene”, referiu Muando.
A postura sobre cemitérios e funerais actualmente em vigor no Município de Maputo data de 1968, sete anos antes da independência nacional, aprovada pela então câmara municipal de Lourenço Marques. Todavia, a realidade actual de gestão dos cemitérios impõe um novo instrumento regulador.
Relativamente à actuação ilegal de alguns agentes funerários a edilidade garantiu que irá fazer um trabalho de auscultação com o Ministério da Indústria e Comércio para se averiguar a verdade dos factos.