Por: João Saltiel
25/12/25
Quando se observa a chegada do Ano Novo, o olhar atento, sobretudo o olhar dos que vivem a escassez, funciona como um scanner que mede a dimensão da evasão dos recursos naturais africanos. Recursos minerais, marinhos e florestais, em vez de se converterem em prosperidade colectiva, acabam por transformar a África num continente marcado pelo sofrimento. O “raio-X” dessa realidade produz imagens de êxodo populacional, alimenta movimentos migratórios forçados e sustenta sonhos de transformação social, económica e política que empurram milhões de africanos para além das suas fronteiras. Essa realidade coloca em causa a interpretação tradicional da expressão popular “o que abunda não prejudica”.
Se a África possui, em abundância, inúmeros recursos naturais capazes de constituir sólidos factores económicos, por que razão esses mesmos recursos não a transformaram num continente de referência mundial? Por que não inverteram o vector migratório, tornando a África um polo de atração, ou ao menos equilibrando os fluxos migratórios globais? A resposta parece indicar que nem sempre a abundância é sinónimo de benefício, e que a referida expressão popular, neste contexto, perde o seu sentido.
Por vezes, procuro no campo filosófico e ético o conceito de “pecado”, tentando identificar qual o pecado que se esconde na geografia africana e que sustenta um sofrimento quase perpétuo. Trata-se de um paradoxo inquietante: um continente erguido sobre uma imensa riqueza natural, mas incapaz de convertê-la em bem-estar social duradouro para o seu povo.
Para compreender o conceito de pecado, parafraseio Thiago Brega de Assis, que o define como um erro racional, uma falha em alcançar a verdade e a racionalidade plena, estabelecendo pontes entre teologia, ciência e matemática, ao mesmo tempo que critica a redução da existência humana a meros números. Complementarmente, recorro à obra Nova Teoria do Pecado, de Miguel Real (2011), que sistematiza doze grandes pecados sociais contemporâneos, entre os quais se destacam: a riqueza financeira especulada, a perversão ambiental, a violência urbana de origem étnica ou religiosa, o individualismo feroz, o consumismo exacerbado, a relativização dos valores éticos, a tecnocracia impiedosa, as desigualdades sociais, a exploração indevida dos recursos naturais, os nacionalismos extremistas e tardios, o hedonismo narcisista e a violência ou guerra como meio privilegiado de resolução de conflitos étnicos, religiosos, políticos e sociais.
Ao observar esse quadro de pecados sociais, torna-se inevitável reconhecer muitos deles como parte da realidade africana, não apenas por responsabilidade interna, mas também por imposições externas. O sofrimento de inúmeros africanos que migram e se submetem a condições desumanas nos destinos de acolhimento ocorre, muitas vezes, sob o olhar indiferente, surdo, cego e emocionalmente mudo de organizações e Estados que proclamam defender os direitos humanos, mas falham na sua aplicação concreta.
É profundamente perturbador constatar que países que superaram as carências básicas dos seus povos há várias décadas, e que desfrutam de um desenvolvimento consolidado, continuem a ver a África como um campo de exploração. Manipulam consciências, fomentam instabilidades políticas, económicas e militares, e contribuem para a perpetuação de conflitos que facilitam o saque de recursos. É um pecado grave quando o barulho das armas é utilizado para desestruturar políticas de controlo da exploração de recursos naturais, enquanto se assiste, sem compaixão, ao deslocamento forçado de crianças, mulheres e idosos, transformados em nómadas do desespero.
A África reúne condições objectivas para oferecer uma vida digna aos seus povos. Possui climas favoráveis e diversificados, temperaturas equilibradas, vastas terras a aptas para a agricultura industrial e sustentável, além de uma riqueza cultural incomparável. Esses factores deveriam constituir uma poderosa atracção para a migração voluntária, para o investimento responsável e para o intercâmbio cultural, e não para a guerra, a pilhagem e a exclusão.
A riqueza cultural africana, aliada à sua diversidade humana e natural, deveria mobilizar uma preferência genuína pela África, tanto por parte dos seus próprios filhos quanto da comunidade internacional. O verdadeiro desafio não está na ausência de recursos, mas na necessidade de uma gestão ética, soberana e solidária desses recursos, capaz de romper com os ciclos históricos de exploração e sofrimento. Assim, a abundância deixaria de ser uma maldição disfarçada e poderia finalmente converter-se numa verdadeira bênção.
A presença de vastos recursos naturais em um território devia ser percebida, logo à primeira vista, como um grande privilégio. Água, minerais, petróleo, florestas e terras férteis devia ser considerado factores primários que garantem prosperidade, autonomia e desenvolvimento das nações. No entanto, a história mostra que a abundância desses elementos pode gerar fenómenos distintos: desenvolvimento económico ou social e instabilidade de todo tipo. Por isso, persiste a questão: os recursos naturais são uma bênção ou uma maldição?
Sob a perspectiva da “bênção”, os recursos naturais oferecem oportunidades econômicas concretas. Países que conseguem investir correctamente a renda obtida com suas riquezas costumam fortalecer a infraestrutura, ampliar o acesso à educação e à saúde e impulsionar sectores produtivos estratégicos. Quando bem administrados, os recursos naturais funcionam como um alicerce para a melhoria da qualidade de vida da população e para o crescimento sustentável. Exemplos disso são nações que utilizaram suas reservas para diversificar a economia e promover inovação tecnológica.
Por outro lado, existe o fenômeno chamado “maldição dos recursos naturais”, identificado por economistas e cientistas políticos. Nesse cenário, a abundância de riquezas pode gerar dependência econômica, corrupção, conflitos internos e degradação ambiental. Muitos países ricos em petróleo ou minérios enfrentam desigualdade social extrema, pouca diversificação econômica e instabilidade política. Além disso, a exploração irresponsável desses recursos compromete ecossistemas e ameaça o equilíbrio climático, criando problemas que afectam presentes e futuras gerações.
Dessa forma, a resposta ao dilema não é simples. Recursos naturais podem ser tanto uma bênção quanto uma maldição, dependendo da forma como são geridos. Uma administração transparente, sustentável e voltada para o bem colectivo transforma a riqueza natural em fonte de desenvolvimento. Já a falta de planeamento e de responsabilidade tende a transformar a abundância em fonte de problemas.
Entendendo a escrita acima, podemos concluir que não são os recursos em si que determinam o destino de um país, mas as escolhas humanas que orientam seu uso. A verdadeira bênção está na capacidade de transformar riqueza natural em bem-estar social; a verdadeira maldição surge quando a ganância e a má gestão prevalecem.
Vamos acreditar no Hino Pan-África “Nkosi Sikelel iAfrika” que em português , significa “Deus Abençoa África”, que o ano que vem seja melhor para África e para o mundo.
FIM-JS
