O País – A verdade como notícia

Moçambique sob pressão: dívida pública cresce e empresários pedem reformas fiscais

O Fundo Monetário Internacional (FMI) alerta para a necessidade de reformas urgentes nas finanças públicas de Moçambique, destacando que o crescimento da dívida pública e o persistente défice fiscal representam desafios significativos para a sustentabilidade económica do país. Segundo o FMI, o governo deve priorizar a contenção da despesa pública, numa altura em que a receita fiscal, que representa cerca de 27% do Produto Interno Bruto (PIB), não cobre totalmente as obrigações do Estado, incluindo o serviço da dívida e as despesas correntes.

A dívida pública e o défice fiscal voltaram a ocupar o centro do debate económico nesta quinta-feira, no país. 

Num encontro que teve lugar na Confederação das Associações Económicas de Moçambique, o representante do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Moçambique, Olamide Harrison, lembrou que sem disciplina orçamental o país não conseguirá manter a confiança dos parceiros nem atrair financiamento externo em condições favoráveis.

“O défice fiscal resulta de uma despesa pública que supera largamente as receitas. A nossa cobrança ronda os 27% do PIB, mas a despesa está nos 34%. É preciso cortar do lado da despesa, porque não há espaço imediato para aliviar a carga tributária”, advertiu. 

Do lado empresarial, a preocupação centra-se no impacto directo que a dívida e o défice têm sobre o sector privado. Eduardo Macuácua, director-executivo-adjunto da Confederação das Associações Económicas de Moçambique (CTA), afirmou que é insustentável continuar a sobrecarregar uma minoria de empresas formais enquanto a maior parte da economia permanece fora da base tributária. “Hoje apenas 20% a 30% da economia formal é que suporta os impostos, enquanto a maioria da economia informal pouco contribui. Defendemos que haja uma reforma que alargue a base tributária, em vez de sobrecarregar as mesmas empresas”, declarou.

Macuácua acrescentou que o recurso do Estado a bilhetes de tesouro no mercado interno “retira recursos que deviam estar a financiar o sector produtivo” e agrava os custos de financiamento. O dirigente da CTA sublinhou ainda que a elevada taxa de juros, a dificuldade de acesso a divisas e a instabilidade fiscal estão a tornar o ambiente de negócios cada vez menos competitivo.

As críticas surgiram durante um encontro que juntou a CTA, o FMI e a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP). O presidente da CTA, Álvaro Massingue, e o presidente do Conselho Empresarial Nacional, Noor Momade, lideraram a delegação empresarial, enquanto Mário Ferreira, recém-nomeado delegado da AICEP em Moçambique, participou pela primeira vez numa reunião formal com o sector privado nacional.

Mário Ferreira sublinhou que Portugal quer reforçar a presença em Moçambique em áreas estratégicas como energia, turismo e infra-estruturas, mas reconheceu que o país enfrenta sérios desafios macroeconómicos. “Há dificuldades, mas nas dificuldades também estão as oportunidades. Portugal tem experiência e interesse em continuar a investir neste mercado em franco crescimento”, afirmou.

No encontro, Noor Momade lançou um apelo à cooperação reforçada, convidando as empresas portuguesas a participarem com maior expressão na 20.ª Conferência Anual do Sector Privado (CASP), marcada para Novembro, e recordou que, um mês depois, terá lugar, em Lisboa, uma cimeira luso-moçambicana. “Estes encontros são estratégicos, porque permitem trocar experiências em áreas como turismo e energia, e fortalecer a cooperação entre os dois países”, disse.

Apesar do tom de cooperação, os números não deixam margem para dúvidas. A dívida pública moçambicana já representa cerca de 90% do PIB, um valor considerado insustentável por vários analistas. O défice fiscal, estimado em mais de 7% do PIB, continua a obrigar o Governo a financiar-se através de dívida interna e externa, num ciclo que agrava os encargos com juros e limita a capacidade de investimento em sectores sociais como saúde, educação e infra-estruturas.

O representante do FMI sublinhou que este é um problema estrutural. “Não se trata apenas de aumentar a receita, mas sobretudo de controlar a despesa e melhorar a qualidade da execução orçamental. O espaço para subir impostos é muito limitado, porque já existe uma carga significativa sobre o sector formal. O esforço deve ir no sentido de alargar a base e combater a evasão”, disse.

O discurso encontra eco nas críticas recorrentes do sector privado, que há anos denuncia um sistema fiscal pouco competitivo, assente em poucos contribuintes e marcado por taxas elevadas. A CTA defende uma reforma abrangente da política fiscal, que passe não apenas pela simplificação dos impostos, mas também pela redução da burocracia e pela digitalização dos processos, de forma a incluir mais operadores no sistema formal.

Para além da tributação, outro dos pontos levantados foi a escassez de divisas, que dificulta a importação de matérias-primas e penaliza a competitividade das empresas nacionais. Segundo a CTA, o problema agrava-se porque o Estado capta uma parte significativa dos recursos disponíveis no sistema financeiro, ao mesmo tempo que as taxas de juro elevadas desincentivam o investimento.

A situação actual é resultado de uma trajectória longa. Desde a crise da dívida oculta, em 2016, que Moçambique enfrenta dificuldades em aceder a financiamento externo em condições favoráveis. Apesar da retoma do apoio orçamental em 2022, no âmbito do programa com o FMI, o país continua preso a um ciclo de endividamento que compromete a sua sustentabilidade. Nos últimos anos, o peso da dívida aumentou, não apenas devido ao défice fiscal, mas também à necessidade de responder a choques externos, como a pandemia de Covid-19, os ciclones e o impacto da guerra na Ucrânia nos preços da energia e dos alimentos.

Comparações com países vizinhos revelam que Moçambique está acima da média em termos de endividamento. Enquanto economias como Tanzânia e Botswana apresentam rácios de dívida mais baixos e maior previsibilidade fiscal, Moçambique continua a enfrentar uma forte pressão sobre as suas contas públicas, o que limita a sua atractividade como destino de investimento.

Dados oficiais mostram que, entre 2015 e 2023, a dívida pública de Moçambique passou de cerca de 60% para quase 90% do PIB. No mesmo período, a despesa com o serviço da dívida cresceu de 9% para mais de 20% da despesa pública total, absorvendo recursos que poderiam ser direccionados para investimento social. O défice fiscal, que se situava em torno dos 4% do PIB em 2019, agravou-se nos anos seguintes, tendo ultrapassado os 7% em 2023, segundo estimativas do próprio Governo.

Vários especialistas lembram que outros países africanos conseguiram reduzir o peso da dívida através de reformas fiscais e de maior transparência. O Gana, por exemplo, implementou medidas de disciplina orçamental após uma crise semelhante em 2015, alargando a base tributária e introduzindo mecanismos digitais de cobrança. Embora o processo esteja longe de concluído, a trajectória é vista como uma referência para países em situação semelhante.

Para Portugal, Moçambique continua a ser visto como um parceiro estratégico, não apenas pelo potencial económico, mas também pelos laços históricos e culturais. O delegado da AICEP destacou que várias empresas portuguesas mantêm interesse em investir em áreas como construção, energia e turismo, mas alertou que a estabilidade macroeconómica será determinante para garantir que esses investimentos sejam sustentáveis.

Do lado do sector privado moçambicano, a mensagem foi clara: sem uma reforma profunda na política fiscal e sem disciplina na gestão da despesa pública, o peso da dívida e do défice continuará a sufocar a economia e a travar o crescimento. “Precisamos de um Estado que seja parceiro, não concorrente, no acesso ao crédito e na criação de condições para produzir. Só assim poderemos gerar mais emprego e riqueza”, sublinhou Eduardo Macuácua.

O encontro terminou com a promessa de mais diálogo entre as partes. O FMI comprometeu-se a apoiar tecnicamente Moçambique na definição de medidas para conter o défice e tornar a dívida sustentável. A CTA reafirmou a sua disponibilidade para trabalhar com o Governo em propostas de reforma fiscal, enquanto a AICEP garantiu que Portugal continuará a apostar em Moçambique como destino prioritário de investimento em África.

Apesar do consenso entre os participantes, os desafios permanecem. A execução orçamental tem mostrado pouca disciplina, e a capacidade política para implementar reformas profundas continua a ser testada. A proximidade de novos ciclos eleitorais poderá agravar a tentação de expandir a despesa, adiando decisões que, embora impopulares, são necessárias para devolver sustentabilidade às contas públicas.

A mensagem deixada pelos intervenientes foi inequívoca: a dívida pública e o défice fiscal não são apenas números de contabilidade do Estado; são factores que condicionam o futuro da economia, a capacidade de criar empregos e a qualidade de vida dos cidadãos. O desafio imediato é transformar o diagnóstico em acção concreta, antes que a factura se torne insuportável para as próximas gerações.

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos