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Uma janela para a alma moçambicana em “Mataram o nosso chefe”

O Vitorino Ubisse Oliveira, porque os mistérios do criar são indagáveis, não inventa histórias, ou, pelo menos, não parece que o faça. Ele escuta-as, sim, com a paciência que os anjos hão de ter para com os humanos; recolhe-as na vizinhança, nas praças, nas conversas que se atropelam ao crepúsculo, um pouco à maneira Lília Momplé, que também tem o dom de ouvir o mundo para depois o desenhar em palavras, sem grande vanglória, sem fogos de artifício, que a verdade, essa, não precisa de muito brilho para ser vista.

O espaço onde se desenrolam os dramas de “Mataram o nosso Chefe”, dramas pequenos e grandes, é quase sempre o rural, o campo, as casas de alvenaria, talvez as mais sólidas, as que resistem ao tempo e às intempéries da vida, onde os camponeses, ou diria, a sociedade tradicional, no sentido mais clássico, aquele que é caro a Émile Durkheim, vive e se desdobra em toda a sua complexidade. Assim, as narrativas acontecem em locais como Macuacuá, Chenapamimba, Mbonguene, Magumbela e a Vila Sede da Gorongosa, nomes que parecem respirar a terra, a autenticidade.

Há que reconhecer, contudo, algumas excepções, por via de um acaso ou de uma necessidade da narrativa: os contos “E Finiosse ficou por lá” e “A minha filha não casa com um pagão” ousaram aventurar-se pelas cidades, uma delas (indeterminada) na Alemanha, quem sabe se para provar que a estupidez humana e os corações perdidos não têm geografia, e a outra, a Beira, em Sofala, onde, coincidentemente, nasceu o autor.

As personagens de “Mataram o nosso Chefe”, por seu turno, são um mosaico humano complexo. Oscilam entre os instruídos, que talvez saibam mais do que convém para o seu próprio sossego, e os não escolarizados, que, por vezes, sabem mais da vida do que os instruídos. Entre funcionários de ministérios que assinam papéis e que talvez se julguem importantes, e executivos que movem mundos de dinheiro e de aparências, e militares que defendem o que nem sempre se entende. Uma tipologia vasta, para que ninguém se sinta esquecido no grande palco da vida, onde todos desempenhamos o nosso papel.

A temática dos oito contos é um mergulho (“étnico”, centro e sul) no campo cultural moçambicano, nas veias do interior, nas suas veias mais profundas, nos costumes e hábitos que tecem o quotidiano. E se alguns insistem em afirmar que se trata somente do local, que o façam, mas que não se esqueçam que as paixões, os amores, as traições, esses são universais. O amor, por exemplo, trespassa também as oito narrativas como um fio invisível, ou um pano de fundo que nunca nos abandona.

No conto “E Finiosse ficou por lá”, para além do contraste evidente entre as cidades, uma daqui, a outra de além-fronteiras, o amor é o pretexto para que Finiosse se perca na Alemanha, abandonando a família à pobreza, não por maldade, mas por conta de uma doença inventada que, por vezes, nos empurra para onde não queremos ir. “A Ira do Homem”, por sua vez, não hesita em tocar nas feridas da poligamia e da infidelidade, assuntos que inquietam, ainda hoje, as almas mais puritanas. “Pitamybyade” trata dos ritos de iniciação/purificação, tema que Carlos Paradona Roque Rufino também soube explorar em “Pitakufa”, e com ele os conflitos culturais que se sucedem. “Ligossi” e os restantes contos andam à volta da cultura como fonte de conflitos, pois a cultura que nos une é, por vezes, a mesma que nos divide. “A Ira do Homem”, “Pitamybyade”, “Mataram o Nosso Chefe”, “Duplo Lobolo” e “Capitão Mponha” debruçam-se sobre as infidelidades e as suas consequências multifacetadas, revelando as dores e as ironias da vida afectiva, que, muitas vezes, é mais labirinto que caminho.

Mas há algo mais em “Mataram o nosso Chefe”, algo que nos faz sorrir com um riso um pouco céptico, talvez, um riso que não é negro nem satírico, mas de um humor ingénuo, quase fotográfico, como se a máquina captasse o absurdo da condição humana, o humor que nasce da cultura de cada um. Vejam, por exemplo, a tirada das personagens do primeiro conto, ao acharem uma tamanha estupidez deixar Moçambique, terra de tantos rios, para ir ver (como turistas) um riacho na Alemanha; ou os múltiplos e curiosos desejos da Zinha, a grávida do terceiro conto, que em plena Maputo pensava em comer mbewas (ratito da machamba), como se o corpo soubesse mais que a razão e o desejo fosse uma fome insaciável que não se aplaca com iguarias de supermercado; ou o Jonasse, aquele que acha que o xitique foi invenção do diabo para desviar os dízimos da igreja. Por último, o Vovô Rele, que num acesso de fúria deserdou o neto Madalito (“madala” significa velho), por este ousar comer os testículos de cabrito, iguaria que por norma pertencia ao ancião, uma lição de hierarquia e de sabor que muitos de nós talvez nunca compreendamos.

O narrador de Ubisse em “Mataram o nosso Chefe” é a cereja no topo do bolo; trata-se de um narrador-personagem com um tom proverbial, que nos acompanha ao longo dos oito textos, como um amigo que nos conta histórias curiosas e trágicas numa mesa do bar. Ao longo da obra, não são raras as vezes que ele, o narrador-personagem, nos presenteia com uma máxima, um provérbio, uma verdade inconveniente ou um conselho disfarçado que nos faz parar e pensar sobre a suposta sabedoria do mundo: “A maioria é que vence” (1), “O preço da traição é alto” (2), “É uma fase da vida. Tudo passa” (3), “O ópio é do povo” (4), “Ninguém será tentado acima do que pode suportar” (5), “As mães sabem de tudo” (6), “O trabalho dignifica o homem” (7), “Onde morre um rei, fica um rei” (8), e muitas outras (“bíblicas”). São máximas que nos fazem questionar quem afinal inventou essas verdades e quem as segue cegamente.

E sim, já o havia dito antes, mas é bom repetir para não restarem dúvidas: as narrativas de “Mataram o nosso Chefe” são muito locais, a despeito de alguns quantos rasgos de “globalidade” que tentam fazer a ponte com o resto do mundo, o desenvolvimento ou a tecnologia (algumas personagens usam o WhatsApp e o Facebook). Ubisse não se assemelha a Mia Couto, que aportuguesa as línguas maternas e os pensamentos locais, tornando-as quase universais para consumo externo; nem a Suleimane Cassamo, n’ “O Regresso do Morto” (quem o conhece, sabe do que falo). Ubisse fá-lo com a inserção repetitiva, sem a necessidade de um glossário, de palavras locais: nomes de bebidas, de alimentos, de ritos, de status sociais, convidando-nos a adentrar no texto sem guia nem tradutor. Uma coragem ou uma teimosia, quem saberá dizer?

Há, contudo, um pormenor, uma particularidade que me deixou um amargo de boca: a introdução, no último conto, da mítica figura “Maria Zamuribodzi” (Maria uma Mama), que, reza a lenda, durante a Guerra Civil, amedrontou as tropas governamentais. Um potencial imenso, que infelizmente se revelou raso, quase um esboço que desapareceu sem deixar grandes vestígios na história.

Em suma, a obra “Mataram o nosso Chefe”, do Ubisse, é um espelho, ou diria, uma fotografia nítida da nossa cultura, das peripécias da nossa sociedade tradicional (e moderna), das suas doenças, sim, as suas doenças, as quais são muitas: a ignorância, a educação deficitária e desigual, o lado sombrio dos rituais de passagem e purificação, a intolerância social-cultural-religiosa, a pobreza e a guerra. É um retrato sem retoques, quase uma crítica social (quase!). Creio eu que, com mais maturidade e o tempo que a tudo transforma, Ubisse poderá ser um escritor, no sentido etnográfico ou sociológico, muito importante para a literatura nacional, um cronista da moçambicanidade, aquele que nos recorda quem somos e o que podemos ser.

Sobre, o tempo das narrativas, preferi não falar, afinal, é sobre o nosso tempo que escreve o autor. E sobre o chefe morto, esse que, felizmente, não é o camarada chefe das ancas salientes do Sérgio Raimundo, comprem o livro, leiam e descubram por vós mesmos como ocorreu o assassinato. 

Afinal, a verdade é, também, um prato que se serve frio e a curiosidade é o primeiro passo para a sabedoria, não é mesmo?

Muito obrigado por vossa paciência e atenção. Que o chefe que faleceu descanse em paz e que o Vitorino Ubisse Oliveira continue escrever as nossas histórias, por a literatura ser isso mesmo, um convite a ver o mundo com outros olhos e a questionar o que nunca havíamos ousado questionar. 

 

*Texto de apresentação do livro, Maputo, 3 de Junho de 2025

 

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