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Bena Filipe dá a “Sonhar liberdade” mesmo atrás das grades

“Dizem que sonhar é um crime atrás das grades. Mas prefiro apodrecer numa cadeia de sonhos, do que viver em liberdade e sentir-me atrás das grades” Flash Enccy (Em liberdade de sonhar)

Que a existência da mulher nunca foi algo fácil, isso é de conhecimento geral. É uma “verdade”. A razão das aspas é justificável, pois Foucault discute o sentido da verdade (e seus regimes) e morreu com uma perspectiva produtiva: a verdade tem a sua história. Ou seja, o que para uns, num determinado lugar e tempo, constituía verdade, para outros, num outro momento do tecido histórico, pode não ser. Esse é o caso da mulher, como papel social.

Ao longo do tempo, muitas grades e correntes foram forjadas e celas erguidas. As mulheres são e foram confinadas, por exemplo, ao espaço doméstico, privadas de circular livremente, estudar ou trabalhar. “Lugar da mulher é na cozinha”, é comum ouvir isso. Ao todo, não é completamente um erro, mas começa a ter aparências de violência quando são cortadas as asas e só podem se confinar naquele espaço, longe do mundo e de todos. Não é ao de todo um erro porque mulher querendo se confinar e cozinhar, não porque foi ensinada que “o lugar da mulher é na cozinha”, é livre de o fazer. Até porque já ensinou Mia Couto, cozinhar nem é um trabalho, mas uma forma de amar os outros porque na comida verte-se ódio ou amor.

As grades não só foram visíveis, como as paredes domésticas, mas também invisíveis. Por exemplo, a obrigação em ter que casar e fazer filhos. O controlo do corpo e da sexualidade feminina. E outras prisões que possam existir pelo mundo, e que somente as mulheres possam relatar na pele e no sangue.

Mas, enquanto presas, a primeira forma de resistência é, provavelmente, sonhar. E elas vão sonhando com a liberdade. Essa é a proposta artística de Bena Filipe, com o seu 80×90 cm.

O quadro, com a técnica acrílico sobre tela, tem uma textura que oferece a possibilidade de sentir o quadro pelo tato. Também, olhando para a paleta de cores, o contraste não é uma força vital da obra, contudo não é por aí onde a obra não é bem conseguida. A falta de contraste proporciona uma sensação de ‘quentura’ por conta da cor meio quente usada, e isso lembra um pouco o inferno, que nos vai lembrar o sofrimento perpétuo.

A autora projecta tanto correntes nos pulsos e grades. Ambos objectos representam o aprisionamento, o cárcere. E esses objectos vão além da prisão formal, mas representam a limitação, as grades colocadas para mulheres ficarem num único mundo, uma única realidade. Atrás das mesmas grades aparecem figuras difíceis de definir a forma. Isso dá-se pelo facto de ser um abstracionismo parcial, pois há uma mistura do reconhecível e o irreconhecível. Há um equilíbrio do real e o imaginário. Esse jogo entre o concreto e o subjectivo sugere camadas de profundidade. Partindo da suposição de que o abstracto representa o subjectivo, a personalidade das mulheres no quadro encontra-se dilacerada e derretida.

O conteúdo da obra é instigante, pois traz à tona o debate. Até onde a mulher quer a liberdade, e até onde considera algo prisão? Pois no contexto moçambicano, em particular, tudo que é tipicamente africano pode ser visto como culturalmente degradante, mas o de outros quadrantes não. E caso alguém prove que Deus é machista, libertar-se-ão dele, ou acharão uma pergunta que conduz ao pecado e, consecutivamente, ao inferno?

O que, de facto, seria uma prisão, se as pessoas, às vezes, escolhem estar em lugares que para outros são prisões? Talvez, a palavra chave esteja na escolha, pois para escolher é preciso liberdade. Chego até aqui com uma acepção: um lugar só é uma prisão quando se é impedido de sair, e limitado a circular, e outros direitos proibidos. Por exemplo, uma casa e um relacionamento podem ser prisões, caso há impedimentos, limitações, direitos suprimidos.

É importante também saber que isso vai depender também de perspectivas, porque “a melhor maneira de manter alguém prisioneiro é tendo certeza que ele nunca saiba que está na prisão” (citação atribuída a Dostoievsky). E a única forma de fazer isso, talvez seja negar educação, por isso o verdadeiro empoderamento da mulher (e de todos) é a educação e colocar um livro na mão. 

No filme “O conde de monte Cristo” (2002) há um encontro de dois prisioneiros numa prisão, um deles é padre, que promete ensinar a ler e escrever:

– Em troca da sua ajuda, oferece-te algo inestimável.

– A minha liberdade?

– A liberdade pode ser tirada, como você bem sabe. Eu te ofereço o meu conhecimento.

A temática liberdade é muito abrangente e pertinente. E ressoa em toda a exposição colectiva de mulheres sobre mulheres, no núcleo de arte. E, porque é sobre mulheres, então é sobre vida. Entre artes visuais e literatura, há algo diferenciado, em que todos os visitantes podem também, por algum momento, criar algo e expressar a sua dor para a cura colectiva através da arte.

Como Flash Enccy cantou, sonhos são lembranças, sonhos são troféus. E mesmo atrás das grades, a Bena mostra que as mulheres lembram a liberdade. E mais do que lembrar, as mulheres, unidas, movem montanhas.

 

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