– Reacção à carta de Carlos Antunes
Por Renato Caldeira
Um artigo da minha autoria – do qual não retiro uma vírgula – publicado neste jornal, sob o título “Futebol e racismo na década 60”, provocou do sr. Carlos Antunes, a seguinte reacção:
Vi o artigo publicado pelo Sr. Renato Caldeira sobre Futebol e Racismo em Moçambique na década de 60.
Independentemente de pensar que se trata de um texto profundamente demagógico e racista (sim o racismo não tem uma só cor), não posso deixar passar em claro a infeliz afirmação do “Sporting (refere-se ao SCLM) clube dos polícias”, retomando uma afirmação do Eusébio de que o Sporting era um clube racista que não aceitava senão jogadores de raça branca, o que desde logo é desmentido no seu próprio texto, uma vez que a maioria dos jogadores de raça não branca que menciona (Hilário, Eusébio, Madala, Maurício, Satar) todos eles foram jogadores do Sporting Clube de Lourenço Marques.
Aliás, a afirmação então feita pelo Eusébio ao “Expresso” foi excelentemente rebatida por um seu colega de equipa, Braga Borges, ele próprio de raça mista, num texto que me permito juntar em anexo. As fotografias são da década de 60 e não mentem!
Trata-se, além do mais, de uma ofensa gratuita não só à história do SCLM, como a de todos os emblemas espalhados pelo Moçambique colonial que sob o nome “SPORTING” (Sporting da Beira, Sporting de Nampula, Sporting de Quelimane, Sporting de Tete, Sporting de Inhambane, Sporting de Gaza, Sporting Clube de Moçambique), aglutinavam nas suas equipas moçambicanos de todas as raças. Eu próprio de pele branca, mas africano como todos os nascidos em Moçambique, joguei na Beira, nessa década de 60, ao lado dos irmãos Manaca, do Palma Pinto, Jerónimo, Sheu, mulatos, negros, chinas.
E como o Sr. Renato Caldeira acompanha o fenómeno desportivo moçambicano na STV Notícias, desafio-o a explicar como é que essa herança “dita racista” continua a perdurar em Moçambique, mais de 40 anos após a independência, e mesmo após a decisão governamental de retirar o nome Sporting dos clubes (Maxaquene – ex-Sporting Clube de Lourenço Marques, Palmeiras – ex-Sporting Clube da Beira, Namutequeliua – ex-Sporting Clube de Nampula, Chingale – ex-Sporting Clube de Tete), em que logo que aquela decisão foi revertida, a maioria deles (Sporting da Beira, Sporting de Nampula, Sporting de Quelimane) retomaram os antigos nomes, e a herança sportinguista até cresceu, com o surgimento de norte a sul de Moçambique, de diversos Sporting’s em lugares onde no período colonial nunca tinham existido clubes representativos do emblema leonino (Sporting Clube de Massinga, Sporting de Namacura, Sporting de Muecate, Sporting de Monapo, Sporting de Angoche, Sporting de Murrupula, Sporting de Vanduzi, Sporting de Tembwe, Sporting de Mocímboa da Praia, Sporting de Chiure), e como é que a “herança sportinguista dita racista” continua afazer parte de uma memória social viva entre as actuais populações africanas de Moçambique
Com os melhores cumprimentos
Carlos Antunes
DESAFIO ACEITE: A MINHA REACÇÃO
A triste e longa noite colonial existiu e o desporto não poderia ser “um menino bonito”, perante as discriminações generalizadas que até originaram a guerra de libertação, não só em Moçambique como noutros países dominados por Portugal. Portanto, a realidade não deve ser branqueada, pois a história (não a estória), apoia-se em factos reais e que devem ser difundidos, com rigor e honestidade. É o que tentei fazer. Infelizmente, o Sr. Carlos Antunes preocupou-se pouco com as questões centrais, detendo-se nos “acessórios”.
Talvez porque durante a colonização, vivíamos em “barricadas” diferentes e sentíamos a discriminação de forma oposta, a carta/resposta que atrás se reproduz, para além de “branquear” algumas verdades, pretende dar a ideia de que tentar retratar o que milhões de moçambicanos viveram muitos anos na pele – também no desporto – é uma manifestação demagógica e até de racismo…ao contrário (?).
Alguns dos factos:
Centrei a minha explanação no que vivenciei em Quelimane, em que no Sporting, antes de 1960, nunca havia actuado qualquer jogador negro. Na então Lourenço Marques e Beira, acredito, a aceitação de não brancos nos Sportings poderá ter acontecido mais cedo. Mas, por favor, não fale do tempo dos irmãos Borja, Palma Pinto ou Shéu, porque isso foi já na segunda metade da década 60, em que eu já era repórter desportivo do Diário de LM!
Porém, devo referir que…
Se quisermos aprofundar essa questão do racismo – que terá tido horizontes temporais diferentes nos vários distritos – posso garantir que nos “leões” da capital da Zambézia, mesmo depois da admissão dos não brancos nas equipas de futebol, manteve-se o impedimento quanto a frequentarem o restaurante, campo de ténis, sala de espectáculos, etc. Quero com isto dizer que um clube, para ser não-racista, não basta exibir uma equipa de futebol, com jogadores de várias cores! Foi no início uma questão cosmética, precipitada também pela necessidade de aumentar o cada vez mais restrito campo de recrutamento.
Quanto a ligações, é verdade que o SP de LM as mantinha muito próximas da(s) polícia(s). Tinha essa fama e, possivelmente, o proveito.
O GRANDE SALTO
A popularização e aceitação das várias raças, a partir do início da década 60 nos Sportings, foi uma vitória dos adeptos e dirigentes não racistas, que ganhou a simpatia dos moçambicanos.
Assim sendo, se tal como referenciei no meu artigo como questão central, o desporto foi uma poderosa arma no combate à discriminação e consequente integração dos cidadãos na sociedade, a viragem nos leões terá tido a sua quota-parte no que acabou acontecendo. Daí a explicação de que tenham surgido os novos Sportings que, orgulhosamente, abundam no país.
Resumindo: a mim – que fiz atletismo no SCLM de 1966 a 1970 – não me movem quaisquer interesses em ressuscitar fantasmas do passado. Pretendo, bem pelo contrário, exaltar a contribuição do desporto, numa luta que nos permite conviver hoje, no desporto e em tudo o mais, sem o espectro da limitação por alguém… “Não ter a cor adequada”!
E como uma imagem fala mais do que mil palavras, aí vai a foto do Sporting de Quelimane, em 1958.