Cada quantum de luz que trespassa o meu ser
leva sempre consigo uma fracção do meu passado.
in a reinvenção do ser e a dor da pedra, Armando Artur
Armindo Mathe é poeta e ficcionista. A sua estreia em livro aconteceu em 2017, ao lançar dois livros distinguidos Prémio Literário TDM 2016, designadamente, Romaria: três dimensões do vento (poesia) e (Des)Contos do tempo (contos). Quatro anos depois de se apresentar aos leitores, o autor regressa às publicações com Mito erecto, proposta literária que evidencia a preocupação pelas substâncias indeléveis determinantes na composição do ser/ego.
O novo livro de Armindo Mathe é uma sequência de sobressaltos produtores do que Roland Barthes considera ser ascético, no seu Fragmentos de um discurso amoroso. Ou seja, ao exprimirem sentimentos e, simultaneamente, força anímica, os sujeitos de enunciação de Mito erecto investem numa conduta ascética de autopunição relativamente a quem se revelam. Partindo desta constatação, o lirismo transbordante forma uma declaração que se destina a uma entidade ideal, cuja presença aparentemente intangível concebe emoções desconcertantes.
Em Mito erecto, a interioridade do ser ascético (a colocação também vale no plural) se robustece em situações caracterizadas por alguma ansiedade causada pelo interesse de os eus poéticos concederem acção às palavras. Nesse hiato constante entre o impulso e a iminência, o poeta caminha sensível às reverberações subentendidas do verbo amar. Mas o amor, essa coisa romântica, deveras masoquista, à semelhança da proposição barthesiana, não se reduz ao objecto cantado (corpo/matéria, alma), o amor em si é o princípio, o meio e a finalidade. Logo, ainda que essa entidade invocada nos textos (à laia das velhas musas poéticas) seja ingrata, o exercício lírico tão-somente fortalece a paixão enquanto elemento de fruição.
Os sujeitos de enunciação de Mito erecto não se vêem isolados das impressões do coração que os persuade. Antes assumem um recurso anafórico ao nível do conteúdo textual, utilizando o esplendor da aurora, a quimera, o vento, a alma, o pôr-do-sol e os sentidos na aproximação à voz que se almeja ouvir. Quer isto dizer que, em Armindo Mathe, a poesia está fundamentalmente na possibilidade e na expectativa. O desejo, o sonho e a fantasia integram o substracto de uma aparente prescrição poética. Mas isso não é o que é decisivo na versificação do autor. Não fosse a imprecisão da palavra no sentido pretendido pelos eus poéticos, estas entidades seriam indiferentes quanto ao que Friedrich Doucet, em A psicanálise, designa centro psicológico da personalidade, isto é, o ego. Aí estão sintetizadas as particularidades gerais dos cultores da expressão. É na focalização das propriedades do ser/ego que se fortifica o conceito poético. O verso, em Armindo Mathe, é subterfúgio para se pensar as ocorrências passionais, a oposição e a consequência desses processos sobre ser-se inteiro com o outro.
Entre os registos que compõem o ser/ego no Mito erecto constam a saudade, a súplica e a fragilidade. A força criativa de Mathe revigora-se na fragilidade e no combate à carência. Ora, ao mesmo tempo que se verifica um ensaio contra a carência, percebe-se que com o amor correspondido de todo os sujeitos poéticos não existiriam. A instabilidade emocional é que os favorece. A contrição é sacra na mesma proporção que a idealização do beijo e do que isso significa. Portanto, mais do que amarem o objecto, os sujeitos de Armindo Mathe veneram as complexidades do amor, essas que, no caso, diria Solomon Marcus, tornam a poesia a manifestação de uma contradição entre o carácter flutuante de toda a significação lírica e o carácter discreto de toda a expressão linguística.
Mito erecto é, igualmente, um exercício sobre o instante que dura a separação implícita causada pela partida: “Na hora do adeus/olhos fechados./ Beiços da aurora/ cravada em minha garganta”; “De lábios fechados, vai! Nem adeus nem a Deus/ escreves-me um dia?/ Tenho saudades de ler-te”, (p. 32).
No instante da despedida se convoca o tempo, crucial porque aí os sujeitos poéticos querem se imortalizar, fazendo-se ouvir. O tempo é uma categoria estratégica para alongar a métrica do verso para lá da linha do horizonte, podendo, esse mesmo horizonte, propor o pretérito imperfeito ou o futuro.
Os sujeitos de Armindo Mathe interessam-se com o que não possuem e, sobretudo, por quem não têm consigo. Essa vocação possessiva contribui para a composição do ser/ego envolto à nostalgia, às lagrimas, ao sufoco e à incerteza: “Eis-me, mar! de ouvidos expostos à inquietude do meu eu, irrequieto.”, (p. 52).
Por analogia, Mito erecto é um livro que interpreta relações sociais e opções individuais, estabelecendo paralelismos, causas e possíveis efeitos. O verbo amar é, categoricamente, o centro de tudo, propondo, na verdade, que a composição do ser/ego depende do que os homens cultivam no coração.
Título: Mito erecto
Autor: Armindo Mathe
Editora: gala-gala
Classificação: 14