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Uma vénia e um adeus a Dilon Ndjindji

Já há festa de Marrabenta. Estou feliz. Posso morrer.
Dilon Ndjindji (2023)

 

Vai o homem e fica a obra. Todo mundo, nessa vida, cai, mas outros caem de pé, sustentados pelas suas obras. A voz do mestre da Marrabenta afinava-se aos poucos e bocados, enquanto combatia a doença que o internou no Hospital Central de Maputo (HCM), e agora se cala de vez.

Dilon Ndjindji, nascido em 1927, antes mesmo de se sonhar com a independência nacional, escreveu a sua história com as notas de violas. Na verdade, a sua história confunde-se com a história da Marrabenta.
Como se diz nesses lados de África, uma pessoa não morre, mas dorme na esteira da eternidade. Não resistiu ao sono eterno o auto-intitulado rei da Marrabenta. Dorme a escassos dias para se festejar os que combatem (Dia das Forças Armadas), um indivíduo singular que se entregou à Marrabenta e aos seus desafios, cujas lutas sempre combateu com afinco.

1927-2024, ver-se-á esses números na sua lápide, mas, entre um e o outro ano, há rastos de marcos e feitos para a cultura moçambicana. Uma história sem igual, que nos obriga a abaixar a nossa cabeça de rendição e vénia, mais do que de qualquer outra coisa.

Aos 12 anos de idade, Ndjindji começava a rebentar as suas guitarras de lata, ensaiando uma vida que se dedicaria, toda ela, à música na sua terra natal, Marracuene. Essa parte do mundo sempre fez parte do seu coração, imagino que a cada batimento seu lá ouvia-se uma sílaba de Marracuene. Parou o coração de bombear sangue a sabor de ngoma (música), e silencia-se Marracuene, com choros. Mas não só Marracuene, pois foi um homem de Moçambique inteiro e África, também, com entrevista até na Music Time in Africa (MTIA), em 2019.

Nos arredores de 1960, com a banda Estrelas de Marracuene, Ndjindji trouxe outra dinâmica com a sua energia contagiante. Com essa mesma banda cantou e encantou em muitos cantos desse Moçambique, e fez até tours pela Europa, cantando em sua língua. Presenteou-nos com vários clássicos e álbuns que marcam tanto a sua vida musical como a própria vida da Marrabenta. Estreou-se com “Xiguindlana”, lançou também outros álbuns intitulados “Dilon”, “O rei da Marrabenta”, etc.

É no álbum “O rei da Marrabenta” em que alcança o seu auge como artista. Esse álbum conta com vinte composições diferentes, mas com um único denominador comum: a guitarra acompanhado de xi-ronga (sua língua nativa). As músicas que mudam entre melodias calmas e agitadas, mostra muito do Dilon Waka Ndjindji, e suas simbologias desse seu lado energético e aconselhador, paternal e confiante.
É nesse grande álbum que se autointitula “Hosi ya Marrabenta” (Rei da Marrabenta), dando esse título a uma música. É esse mesmo título que empresta o nome ao álbum. Depois mergulhamos na composição “Yinguelana” (Escutem), onde ele, “Diloni Waka Ndjindji”, se apresenta.

Nas suas composições nunca faltou a temática morte. Na música “Utafa usiya ulombi” (Lit. Morrerás e deixarás açúcar), fala do partir de uma outra forma, pois a morte sempre requer uma forma para ser falada e acontecer. De forma pragmática e típica, apenas repete as mesmas palavras deixando as interpretações em aberto, até onde conseguimos divagar? Quando nos canta que iremos morrer e deixar açúcar, que açúcar? Pela sua natureza doce, ocorre-nos na cabeça que esteja a trocar papéis com sua metáfora.

Porque a metáfora nos ajuda a compreender um conceito em detrimento do outro, como sugere Lakoff e Johnson, Dilon Ndjindji explica o prazer, a libido Freudiana, por meio do açúcar. Apesar de mencionar nomes de mulheres na canção, o que nos leva a pensar em prazer sexual (para Freud se trata de maior manifestação da líbido), sente-se que fala também de outros prazeres que as pessoas têm. Essa música é uma lembrança de que todos os prazeres serão cá deixados, na terra. Uma lembrança, como quem diria, difícil num país caracterizado por cristianismo, pelo menos na zona Sul. Afirmando que morrerá e deixará para trás todos os prazeres, choca um pouco com o conhecimento cristão asceta, em que preza uma vida de sacrifício, uma vida de luta contra os desejos do corpo, como diria Nietzsche, uma negação da vida.

Ainda sim, lembramos com essa canção que não devemos esquecer de aproveitar o nosso presente, e pararmos, por segundos, de sonhar com uma felicidade transcendental. Nessa canção, o sujeito lírico confunde-se com o autor da própria canção. Aliás, para Dilon, a linha que separa essas duas entidades é muito ténue, parecendo até não haver.

Na música Marracuene, uma das mais céleres do artista a par de “Podina”, que também consta desse álbum, diz que Dilon se vai, e Marracuene chora a sua morte. A verdade disso é que nos chega, sim, a sua já há anos anunciada morte, e também banha-se de lágrimas Marracuene.

Na canção em alusão, também avisa o sujeito lírico, dizendo “Mu ta ti Vhonela”, ou seja, estaremos por conta própria. Entende-se que iria partir, na altura, com alguma dor no coração porque ninguém se interessava com a música tradicional moçambicana, em particular a sua Marrabenta. Se ele estava na vanguarda da cultura moçambicana, com quem iremos ficar com a sua partida? Era essa a questão que colocava há duas décadas.

Naquela que foi, quiçá, a sua última entrevista, em 2023, no dia em que vários artistas e amigos fizeram a homenagem, depois de ter recebido a alta hospitalar, disse: “Já tem festa de Marrabenta, estou feliz. Posso morrer”.

Dorme na cama dos reis, Dilon. Parte com um sentimento de dever cumprido na luta para a valorização da música e ritmos moçambicanos, também de toda a cultura moçambicana. Ndjindji é uma referência, um ícone para todos. Nesse Moçambique que é sufocado pela globalização, remou contra as ondas e venceu. Andávamos globalizados quando Dilon estava bem localizado. Diga-se, é no fim que se fazem as contas. Agora só nos resta uma vénia e um adeus ao mestre da Marrabenta…

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