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Uma brilhante lanterna à vista: o programa “Novas Narrativas”

Por Virgília Ferrão

 

Os laços entre África e Reino Unido são sobejamente conhecidos. Actualmente, o continente e o país mantêm estratégias de cooperação que redefinem diferentes narrativas em várias esferas: arte, cultura e educação. De facto, a relevância das relações internacionais e o papel que cada indivíduo desempenha nessas mesmas relações é inquestionável.

O que pode ser questionável, contudo, é como as complexas singularidades e os contextos de cada povo são interpretados no decurso de diálogos interculturais. Como diz o ditado popular, a verdade está nos olhos de quem a vê. Neste caso, o que é a verdade? As histórias africanas conhecidas no Reino Unido são aquelas com as quais os africanos se identificam? Será que as narrativas representativas do Reino Unido são conhecidas nos países africanos?

Estas questões são reflectidas, de forma instigante, na pesquisa da British Council, por intermédio da M&S Saatchi World Services, para um programa de cinco anos, designado “Novas Narrativas”. A iniciativa visa contribuir para actualizar as narrativas africanas e do Reino Unido, estimulando o diálogo e promovendo colaborações mais benéficas entre os jovens dos dois lugares.

Nesta resenha, pretendo avaliar até que ponto a pesquisa da British Council é eficaz para o programa “Novas Narrativas”. O enfoque particular vai ao que foi designado “os pontos de contacto da narrativa”, que se referem à interacção das fontes e às condições que moldam as narrativas comuns. Foram identificados quatro pontos de contacto da narrativa: 1) directo, 2) ponte, 3) mediático e 4) icónico.

Os pontos de contacto directo referem-se a experiências em que os jovens entram em contacto com pessoas de outros lugares. Já as pontes, por outro lado, são plataformas que envolvem pessoas de ambos os lugares. Exemplos de pontes incluem a Liga de Futebol Inglesa, com muitos jogadores dos países africanos. Os pontos de contacto mediáticos, por sua vez, incluem actores, televisão ou publicidade e representações na midia de um ou outro. Algumas representações são positivas na forma como comunicam o outro o lugar, mas outras apresentam uma imagem mais trivial.

Os pontos de contacto icónicos são interessantes dado que referem-se a indivíduos, lugares ou edifícios que são identificados, quer com o Reino Unido, quer com a África. Exemplos incluem a família real britânica e William Shakespeare (Reino Unido), assim como Nelson Mandela ou o Kilimanjaro (África).

A pesquisa da British Council indica que a narrativa dominante, pela perspectiva dos jovens africanos, é que o Reino Unido encarna uma gama diversificada de valores positivos, sendo visto como líder mundial, em termos académicos ou económicos. Ao mesmo tempo, existe uma preocupação com o racismo e o elitismo.  Na perspectiva dos jovens do Reino Unido, entretanto, o continente africano, como todo, é imaginado de acordo com dois extremos: idealizado pelas visões românticas da natureza e da vida selvagem, ou demonizado pela corrupção e pobreza. As nuances é são mais pesadas do lado africano no campo da imaginação, e mais ausentes do ponto de vista do lado britânico. Certamente, esperava-se muito mais detalhes no envolvimento de um continente com mais de cinquenta países espalhados por três fusos horários e oito regiões geográficas distintas, o que indica um problema.

A pesquisa vai além ao destacar não só os pontos de contacto narrativos mas também as narrativas que os jovens de países africanos e do Reino Unido gostariam que o outro tivesse acesso, bem como que aspectos das narrativas deveriam ser amplificados e/ou evitados. Curiosamente, por um lado, conclui-se que as tropas coloniais latentes e neo-coloniais, a apropriação cultural e a expressão da fragilidade são para ser evitados. Por outro, as vozes influentes e a diversidade africana são aspectos por ampliar. Se isso acontecesse, haveria um impacto positivo nos diálogos entre os povos e no desenvolvimento das nações, especialmente nos países africanos.

Ainda sobre o tema da diversidade, inclusão e pluralismo, sou de opinião que as novas vozes africanas precisam de ser amplificadas e ouvidas, particularmente aquelas que poderíamos considerar a “minoria”, por exemplo, dos países lusófonos. Apesar da barreira linguística, os países da África lusófona desempenham um papel importante, na arte, cultura e educação, moldando estas relações. Estes países são frequentemente deixados para trás em algumas interacções que reforçam os laços dos países africanos e do Reino Unido. Como tal, as iniciativas de tradução de ambos, para que o público inglês do Reino Unido e de África possa ter acesso às criações africanas lusófonas e vice-versa, é crucial. A este respeito, Moçambique é um dos países que tem dado grandes contribuições. Um exemplo, é o trabalho da editora Trinta Zero Nove, reconhecida através do Prémio Excelência em Iniciativa de Tradução Literária na Feira do Livro de Londres em 2021, e do Prémio PEN Translates Award (atribuído à Sandra Tamele e a Jethro Soutar), em 2022, pela tradução para o inglês da obra “Tchanaze, a donzela de Sena”, de Carlos Paradona. As iniciativas de inclusão poderiam também incluir a promoção de oportunidades de intercâmbio cultural e de aprendizagem.

Outro aspecto que pode ser percebido a partir da metodologia empregada pela pesquisa da British Council é referente a ferramentas fundamentais para uma mudança real nas narrativas actuais. Primeiro, a interacção e a escuta de vozes individuais, especialmente dos jovens. Embora seja essencial o papel do Governo e das instituições para orientar o volante, de modo a atingir-se os resultados desejados, deve ser dada atenção às pessoas, como indivíduos, e às suas escolhas. Da mesma forma, o reconhecimento das realidades múltiplas e complexas sobre cada país parece crucial. Compreender, por exemplo, as características boas, más e, sobretudo, as reais sobre cada lugar – sem cair em precipitadas teorias pessimistas ou optimistas sem suporte – é fundamental para a implementação eficaz do programa “Novas Narrativas”.

Ao destacar os pontos que moldam as narrativas comuns, a pesquisa torna óbvia a importância do desmantelamento de estereótipos óbvios. Não se é farinha do mesmo saco. Os hábitos estereotipados permitem-nos golpes que põem em risco as rotinas diárias individuais e as relações mais intrínsecas interinstitucionais. Melhores oportunidades podem ser alcançadas se as pessoas compreenderem melhor as características culturais dos locais onde se inserem. Os jovens africanos e os jovens do Reino Unido podem sentir que os ambientes ou os lugares estão contra eles, quando, na realidade, é apenas uma questão de mistura de génios e de visões do mundo. O destacamento desta particularidade é um excelente diferencial para o sucesso do programa.

Por falar em oportunidades, não se pode ignorar que uma compreensão das narrativas que constroem os países africanos e o Reino Unido conduzirá a uma inclusão social. Este conceito assenta na pró-actividade dos Estados na abordagem das desigualdades, no entanto, é também um conceito complexo porque engloba muitas realidades diferentes. A investigação facilita a compreensão das diferenças.

Como jovem autora de um país africano lusófono, estou feliz por ver esta pesquisa e este programa com potencial para fomentar o diálogo e a cooperação entre o meu continente e o Reino Unido. Neste contexto, as grandes lições a serem retidas são: ao invés de as realidades complexas sobre cada um dos povos e lugares serem temidas, devem servir para um melhor engajamento entre os povos; as vozes que podem moldar as novas narrativas devem ser ampliadas e as suas ideias podem contribuir para diferentes políticas em ambos lugares. É tempo de dizer adeus aos estereótipos e aos preconceitos. Em bom rigor, é tempo de redescobrirmos a verdade pelos olhos de quem está nos países de África e do Reino Unido.

30 de Agosto de 2022

 

 

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