Nem tudo o que agora te conto é totalmente fiel ao acontecimento. Aquilo foi mais um exemplo das tantas vergonhas que aconteceram desde o início da crise. Conto-te devido à elevada significância da instituição em causa. A realidade não enganava, o despautério andava solto.
A sessão de interpelações ao governo tinha acabado de iniciar. Os ministros já estavam habituados àquela tortura, mas prova oral que é prova oral sempre os deixava nervosos e ali estavam eles, mais uma vez, com as caras mijadas. Transpiravam. De vez em quando obrigavam os lencinhos de seda que bailavam nas mãos a beijarem as suas faces, a enxugar aquela adrenalina que se convertia em água e se exilava do corpo.
– […] O nível de roubalheira deste governo é demais. Comem tudo sozinhos. Não é assim… – disparava um homem de fato preto que falava a partir de um púlpito de madeira na sala das sessões plenárias do parlamento. As palavras saíam cansadas da boca, ziguezagueavam pela sala, carregavam nas costas o peso do sotaque changana.
– Digníssimo colega, acabou o seu tempo – interrompeu-o, com uma voz rastejante, uma senhora de cabeça rechonchuda, na qual um par de lentes permaneciam suspensas num aro metálico.
– Sim, digníssima presidente. Já termino, só mais dois minutos! – respondeu o homem do fato preto.
– Eu disse que acabou o tempo colega. Não há nem mais um minuto! – rematou a senhora.
Havia fumo tóxico no ar. A tensão se apossava da sala. Mesmo assim há quem conseguisse adormecer naquele ambiente. Não era um, nem dois os deputados que se encontravam a tirar uma soneca enquanto a sessão decorria.
O homem do fato preto estava decidido a acabar o que restava do seu discurso. Como se aquela fosse a parte mais importante de sua intervenção, não se intimidou. Ajeitou o micro e disse:
– O que tenho por dizer não leva nem um segundo. – A senhora fez sinal que o ia interromper, mas o discurso do homem corria velozmente. Era um desses camiões que "voam parece vião". Acabou por se resignar e o deixou continuar a sua fala. – Estiveram o tempo todo a dizer que a dívida era do povo e pioraram as condições de vida de quem já não precisava de mais nenhum fardo, enquanto vocês sempre tomaram banho com água mineral e se untaram o corpo com caviar. Demitam-se, não servem ao povo vocês! – concluiu o discurso o homem do fato preto.
Enquanto abandonava o púlpito, uma forte salva de palmas que tinha irrompido do seu grupo parlamentar inundava a sala. Do outro grupo parlamentar, que apoiava o governo, gritos de reprovação ecoavam. A confusão se estabelecia. O deputado tinha metido o dedo na ferida.
– Digníssimos colegas, ordem na sala! – ordenou a senhora que tinha interrompido o homem do fato preto. Bateu a mesa com um martelo de madeira e continuou – ordem, ordem!
Depois de longos cinco minutos de desordem, a sala serenou e a presidente convidou a representante da outra bancada a gozar da palavra. A senhora levantou-se do seu assento e se dirigiu ao púlpito. Desfilava, exibia as três capulanas de cores muito luminosas que lhe cobriam o corpo. Era a chefe da bancada parlamentar do partido do governo. Os seus partidários olhavam-na expectantes. A defesa da sua honra estava naquela mulher.
– Oprigada senhora bresidente! Senhora bresidente da Assembleia da República, excelência. Senhor brimeiro-ministro, senhores ministros e vice-ministros, digníssimos mandatários do bovo, meus bares, ilustres convitatos… excelências! Coustaria de dizer que… – as palavras continuaram a sair da boca, mas ninguém mais ouviu.
A luz e o som sumiram sem despedir. Fugiam rumo a um lugar onde houvesse gente com tomates para pagar as dívidas. O parlamento ficou às escuras. Alguém se esqueceu de pagar a conta de luz com recorrência. O fornecedor de energia eléctrica, cansado daquela pouca vergonha, tratou a digníssima "casa do povo" como se tratam os devedores. Cortou-lhe a energia eléctrica sem palhaçadas. Finalmente chegou à "casa do povo" o que há muito o povo vivia!