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Um olhar compungido “No verso da cicatriz”

Por: Lo-Chi

 

Como prelúdio desta abordagem, dizer que o primeiro contacto que tive com o Bento Baloi foi através do livro de crónicas “A arca de não é”. E por princípio, quando leio um livro de um autor que desconheço, tenho como hábito sacrossanto, não ler (antes do conteúdo do livro) sequer o prefácio, menos ainda a sinopse, e em consequência, não sabia do seu percurso literário, e embalado no comum, disse comigo mesmo durante a leitura, este cronista não tarda muito vai escrever um romance. Afinal havia ele começado pelo romance.

E este romance, “No verso da cicatriz”, o segundo da autoria do Bento Baloi, que segue ao livro de crónicas anteriormente referido, o título à partida provocou em mim uma enorme expectativa em relação ao final, posto que cicatriz é uma marca, fruto de uma ferida sarada, cujo verso pressupõe a existência de tecidos normalizados.

O livro é dividido em três capítulos, que o autor entendeu designar por Livros: Livro Primeiro com o título de “A Ferida”, Livro Segundo, cujo título “O Sangue” e o Livro Terceiro, “A Cicatriz”- note-se o princípio lógico das designações. Nele, os personagens narradores principais, (porque há um terceiro fortuito e fruto da imposição do desenvolvimento da história) o Bernardo e a Helena, que se apaixonam, mas por causa de problemas étnicos, as suas venturas acabam em desdita, que conflui e se confunde com a desdita do país. País esse recentemente nascido, que se queria uno e feliz, mas que sobra derrapando, de asneira em asneira, num processo selectivo de exclusão tão profundo, que chocava e choca com uma das palavras de ordem: Unidade.

Livro Primeiro

Este Livro Primeiro explora fundamentalmente as relações entre indivíduos. Nos factos relatados, nota-se uma evidente verosimilhança com a realidade, e o autor já com propósito, julgo, foi buscar os nomes onde as tramas se desenvolvem, à geografia real do país, e onde factos históricos não ficcionados aconteceram, dando-nos consequentemente a entender que elas tiveram como base de criação factos reais. O enredo deste drama, tem como epicentro o povoado de Carico, que fica a trinta quilómetros a norte da vila de Milange, para quem vai em direcção à actual sede do distrito Mulumbo, onde na realidade histórica do país os professantes da religião, Testemunhas de Jeová, foram colocados em campos de concentração. Campos de concentração que tomaram o eufemismo de campos de reeducação, como tantos outros criados, em Niassa e Cabo Delgado e outras províncias, onde por sinal o Bernardo, personagem fictício, acabou passando por alguns famigerados.

E logo nas primeiras páginas do romance, fico encantado com a história de amor destes personagens principais do livro, o Bernardo Muhlanga e a Maria Helena, que tecem uma relação que me levou aos primórdios da minha existência, quando comecei a sentir aquele impulso terno e vital, o qual provoca a inexcedível empatia pelo sexo oposto. É mesmo aí que o autor me seduz, com a definição que dá aquilo que é a consequência final e almejada desse fenómeno: fazer amor. Descrevendo muito criativamente através do seu narrador, diz: “… deixo de sentir o meu próprio corpo que se funde ao dela num ritual solene” para depois fazer essa hierática revelação “Dizem os entendidos que Deus fez os homens e as mulheres. Deixou-os na terra e Ele foi para o céu. Depois convidou-os a fazerem uma visitinha sempre que seus corações dominassem a razão da vida e fosse difícil descortinar onde começa o corpo de um e termina o do outro.” Maravilhosa e terna essa emoção, para se poder adivinhar, num profundo choque emocional, o que por antítese se tece, paulatina e inexoravelmente. Todo um enredo dramático revoltante, que não cessa, de violência, de ódio, de fome, com dois ou três pequeníssimos intervalos, até ao final do livro.

Neste capítulo, no meu entender, o Bento Baloi pretendia mostrar a relação causa e efeito de determinadas atitudes políticas. Um efeito que vai medrando, subtil e sorrateira, a violência, uma violência que acaba sendo descarada e gratuita muitas vezes, fazendo-nos esquecer a causa. Mas uma causa se subtil, não menos violenta e mais evidentemente desestruturante, social e individualmente falando, cujo lema se pode resumir na mínima: ou estás comigo ou estás contra mim. Para justificar a autocracia e os desmandos. Como se a vida fosse monocromática.

No meio de todo este drama sórdido, o autor recorda-nos a natureza boa do homem, ainda que envolto no meio de algozes e de realidades por demais inumanas, a solidariedade impera, materializadas nos personagens, Nelson, Faruk, Patrick Mutarawa, o malawiano, mestre Chilengue, Sofia e muitos outros que eventualmente vão cruzando nos caminhos de Bernardo e Helena.

 

Livro Segundo “ O Sangue”

Se o primeiro capítulo, “A Ferida”, tem um forte pendor para retratar as relações humanas, neste segundo o que se realça é a relação social, muito caracterizado na relação intra-família e inter-famílias, estas estratificadas pelas etnias.

“O Sangue” é como uma peça do puzzle que vem completar e encaixar-se aos factos ficcionados no Livro Primeiro, dando a conhecer os fenómenos acontecidos concomitantemente, com os do Primeiro, mas em outros espaços. Neste, a personagem narradora é a Helena que se apaixonara e mantivera relações íntimas com o narrador do primeiro, Bernardo; e que por questões de etnia, confundidas ou aproveitadas (pelo seu pai, secretário do bairro) com questões ou circunstâncias político-religiosas inventadas; é deportado para Carico. Helena, uma mulher que sai de Maguaza, distrito da Moamba, em busca do seu amado, viajando em meios nunca dantes navegados, para um local desconhecido, Carico, na província centro-norte da Zambézia, sem recursos, nem azimutes, chega e cai no coração de um conflito armado. Não encontra a pessoa amada. Emigra, imigra, sem saber nem consciência. Tem uma relíquia nas mãos, para ela espiritual, para outros, económica, que por causa da mesma, quase lhe foi fatal. Destruída a relíquia a sua protecção física se vai deteriorando, ainda que retornada as suas origens. Este pequeno dado, cria-me a convicção de que, não por mero acaso, o autor nos chama atenção para a realidade e a força das nossas crenças e Deuses (e ele faz questão de pôr em maiúscula, fora dos cânones do português complexado), apelando-nos para autenticidade. Aqui o Bento Baloi releva o papel determinante da mulher que, na sua aparente fragilidade, no seu silêncio expressivo, se impõe e move mundos, montanhas e até fronteiras físicas e emocionais, quando valores mais altos se alevantam.

Muito subtilmente, este capítulo também levanta a questão da exploração dos nossos recursos, simbolizados nos ossos dados à Helena pelo nhamissororo Zondane. A posse de riqueza que desconhecemos, mais que outros conhecem, e em face da nossa ignorância e dos nossos apertos, económicos, financeiros e humanitários, tentam levá-los por “tuta e meia”. E os nossos irmãos, que tendo um olho – “ em terra de cego zarolho é rei” – à força, tentam roubar aos seus irmãos desesperados, e acabam sequer tendo o rédito devido, criando apenas desgraça no seio e conflitos. Esta imagem teve o condão de levar-me a viajar a Montepuez, a Palma, a Olinda, a Pebane, a Larde, a Temane.

 

Livro Terceiro, “A Cicatriz”

Neste capítulo, revelando um profundo labor de pesquisa, é praticamente a saga do Bernardo na sua segunda deportação, da qual por questões que lhe escapam e por necessidade de sobrevivência acaba como guerrilheiro do revoltoso grupo armado. No desenvolvimento das peripécias, o autor, para além de fazer um mapeamento das principais bases da rebelião armada, de norte a sul, passando pelo centro, não se furtando de dar não apenas a localização como a designação verdadeira, também descreve as principais batalhas acontecidas que iam desequilibrando as forças para um e para outro lado da contenda. Uma das quais, bem conhecida, a batalha de Inhaminga que provocou um tremendo volt face no jogo de forças, impondo mudanças nas hostes governamentais; bem como a batalha de Dombe, só para citar algumas. Importa frisar que o interessante é que tudo isso é narrado numa perspectiva diferente e sui generis, já que feita por um guerrilheiro, que era por obrigação circunstancial e contra a filosofia da organização onde forçosamente operava, mas que também era um revoltado contra o sistema oficial que o deportou. Neste capítulo evidencia-se os sistemas em conflito.

Este livro, no seu conjunto, é a história do personagem Bernardo que quase a ser feliz é deportado, e quase a voltar a origem é de novo deportado, acabando entrando num movimento rebelde com o qual não se identificava (aqui a imagem criada pelo autor do arquitecto e do engenheiro) e quando chega a casa nada é como antes. Quando olho para o enredo do Bernardo, pressuponho que foi intenção do autor fazer representar neste personagem, todo uma série de azarados deste pais, que sem querer, é metido em tramas cujos arquitectos e engenheiros (parafraseando o autor) eles desconhecem e fazem deles operários, quando muito mestre-de-obras, de um edifício cheio de mazelas e problemas de concepção, onde eles não querem participar. Estes sistemas opressores e autoritários acabam fazendo das pessoas aquilo que eles não são e nem queriam ser. No reverso da moeda, não obstante toda a sua máquina de controlo e repressão, criam as bases para o florescer da solidariedade dos oprimidos e no instinto natural de defesa e sobrevivência, induzem a criação de redes de subversão: consequência lógica!

Este drama termina precisamente no encontro (que virou encontrão) entre pai (Bernardo) e filho (Bernarduana), num clima de forte suspeição, sem que soubessem quem era quem. Engalfinharam-se numa batalha, onde o filho acaba desmaiado, carregado pelo pai. E são os residentes de Maguaza que acabam revelando a identidade deles, no momento que se anuncia o acordo geral de Paz de Roma.

Acordo que era suposto constituir a cicatriz, (eu divagando no título) cujo verso resguardasse um tecido regenerado, na inserção, na reconciliação e na união. Esse acordo, infelizmente fora da ficção, virou uma crosta, encobrindo uma úlcera social e económica com tecidos purulentos e em putrefacção, a urgir uma raspagem sob o risco de gangrena e suas consequências lógicas.

 

Quelimane, aos 31 de Agosto de 2022

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