O País – A verdade como notícia

Um filósofo no contentor de lixo

Por Valério Maúnde

 

Mabjeca tem 26 anos de idade. Toda a sua pouca vida passou dentro de uma bolha de fantasias e sonhos. Após o secundário, maravilhado com as teorias e correntes filosóficas que bebeu dos manuais escolares, decidiu formar-se em filosofia, movido pelo fervoroso e irredutível desejo de aprender a construir saberes lógicos e racionais e “tornar-se um ser pensante”, como frequentemente se gabava, carregando a obra Metafísica de Aristóteles debaixo do braço, levando-a para onde quer que fosse: à barraca, às festas, ao xitique, ao mercado, ao velório etc. Mabjeca só não levava a sua nova bíblia à missa porque abandonara a fé ao ser confrontado com a célebre e polémica teoria da morte de Deus, defendida pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche. A crença de Mabjeca foi sepultada a apenas três palmos e meios do chão, mas não logrou ressuscitar ao terceiro dia. Deitou fora o terço e passou a deixar a estatueta da virgem de cabeça para baixo.

Mabjeca mergulhou tão fundo no estudo da lógica aristotélica que se esqueceu de atentar para uma verdade importante, se calhar, a mais importante de todas: os índices de empregabilidade do seu curso em Moçambique. É que, por aqui, os filósofos acabam quase todos numa sala de aulas e com um salário tão baixo que muito cedo começam a problematizar alguns saberes, como é o caso da máxima de Descartes, segundo a qual basta pensar para existir. Nesta pérola do Índico, só pensar não basta para existir; é preciso ter dignidade, que decorre, irrevogavelmente, do poder de compra e da capacidade de atender às necessidades básicas do quotidiano.

Não tardou e, após 4 anos de imersão no saber filosófico, a cruel e pontiaguda verdade acima referida fez estoirar o balão da fantasia de Mabjeca e fê-lo tombar em vertiginosa queda livre numa sala de aulas com mais de 60 alunos. Era hora de pôr a ciência em prática e ensinar os jovens alunos a pensar, a criticar, a problematizar, ou seja, a filosofar.

Para a sua surpresa, o afamado método socrático não produzia efeito naquele contexto. É que os alunos não tinham disposição para responder às perguntas do professor e, quando dialogavam, era sempre entre eles, todos ao mesmo tempo, sobre tópicos alheios à aula, anulando completamente o papel e a figura de mestre que Mabjeca ali ocupava.

Mabjeca caiu no desânimo, perdeu a motivação para leccionar, até que, certo dia, lhe chega uma maravilhosa notícia: os salários seriam revistos e pagos a partir de uma Tabela Salarial Única (TSU). Para Mabjeca e para muitos funcionários públicos, a T-S-U passou a representar a esperança de ordenados melhores. Era uma representação monetária de Moisés no Egipto, com a missão de libertar os funcionários públicos da opressão da miséria. Esta esperança, entretanto, assentava mais na fé que na razão, pois bem se disse que não se tratava de aumento, mas de uniformização dos critérios de pagamento, que poderiam (mas não era certo) resultar em aumento. Mabjeca e os demais funcionários estatais fizeram ouvido de mercador, focaram-se nos prós e contas, ignorando os contras.

No final do mês, a verdade foi revelada: não só o professor Mabjeca não teve aumento, como se viu integrado num nível salarial de valor inferior ao que vinha auferindo. O professor de Filosofia passou a fingir que trabalha, imitando o Estado que finge que paga.

Em mais um dia laboral, Mabjeca entra para a sala da 12ª B, pega no giz e escreve no quadro o tema da aula: silogismos. Pela primeira vez em muito tempo, isto é, em muitas aulas, o assunto desperta o interesse dos alunos, que decidem emprestar um pouco da sua atenção ao professor. Mabjeca começa pela definição: – «em lógica, silogismo é um raciocínio feito a partir de duas proposições (premissas), das quais se deduz uma terceira, a conclusão». A explicação não faz eco. Uns franzem o sobrolho, outros coçam a cabeça e outros ainda se entreolham confusos.

Apercebendo-se do alarde discursivo sem eco que tinha acabado de produzir, Mabjeca abandona as conceptualizações e parte para os exemplos: «Todos os homens são mortais; os moçambicanos são homens; logo, os moçambicanos são mortais».

Aham! – exclama a turma em sinal de compreensão.

Contente com a reacção, é a vez de a turma provar que realmente assimilou o conceito, dando exemplos. Marieta é a primeira: – «Se chover, não vamos ao cinema; chove; logo, não iremos ao cinema».

O professor aprova o exemplo e a turma aplaude. João Belo (mais conhecido por JB) levanta o braço, pedindo permissão para falar. A turma agita-se, reflexo da fama de indisciplinado que o jovem ostenta não só na turma, mas na escola inteira. O professor, inocente, pede silêncio e demanda que todos prestem atenção ao colega. JB levanta-se, ajeita a gravata, clareia a voz, e remata sem misericórdia: – «Todos os funcionários públicos vão receber TSU; a TSU não é um aumento salarial; logo, os funcionários públicos vão morrer pobres».

Mabjeca perde a fala, estremece, os dedos enfraquecem e deixam cair o pau de giz, que tomba e se desfaz sobre o chão gélido da sala. A turma põe-se às gargalhadas sem mãos a medir. O professor abandona a sala desconcertado, sem rumo, deixando o seu material didáctico para trás.

Dali em diante, nunca mais o professor Mabjeca voltou à escola. Meses depois, há quem jure tê-lo visto no interior de um contentor de lixo, junto à lixeira de Hulene, descalço, sujo e maltrapilho, repetindo uma ininterrupta e quase filosófica cantiga: «só sei que nada sei, mas sei que com TSU vou morrer pobre; só sei que nada sei, mas sei que com TSU vou morrer pobre…»

 

 

 

 

 

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