O uso de material impróprio pode ter originado a queda de uma laje de um edifício em construção na avenida marginal, na cidade de Maputo. Passa mais de um mês depois do acidente e a Comissão de Inquérito já está fora de prazo.
Do dia para noite, os sonhos acabaram e as nuvens taparam o sol. Tudo ficou escuro! Aquilo que era um rotineiro “até já” tornou-se num eterno “adeus”.
O dia 17 de Setembro ficou marcado pelos piores motivos para as famílias Manhiça e Oliveira. É o dia em que Dércio António Oliveira e Reginaldo Manhiça morreram esmagados por uma laje numa obra localizada na avenida marginal da cidade de Maputo, que está a ser executada pela empresa portuguesa Barqueiros e pertencente à MMD Imobiliárias.
Naquela fatídica terça-feira, Dércio António fez como fazia todos os dias: acordou, preparou-se, foi saudar seus pais e rumou à avenida Marginal onde fazia trabalhos como pedreiro. Até aqui estava tudo normal. Caiu a noite e, pela primeira vez, Dércio não chegou para o jantar. E o mau augúrio tomou conta da mãe.
Com lágrimas no rosto, a senhora Estrela Afonso Maússe conta que sentiu “muito calor e medo”, até porque “quando a coisa se direcciona a si você sente”.
Lá mais para o amadurecer da noite, a verdade chegou à família. Afinal, Dércio nunca mais iria jantar. O senhor Pio De Oliveira, pai de Dércio, conta que por volta das 22 horas daquela terça-feira chegaram dois jovens à sua casa.
“Fui ter com eles, perguntei o que se passava. Eles pediram desculpas pela hora e disseram que traziam uma má notícia para mim, mas não me poderiam dizer, depois perguntaram se eu tinha celular. Confirmei. Deram-me um contacto. Liguei e do outro lado atendeu alguém que me disse que meu filho morreu. Logo depois perguntei-lhe morreu de quê”. Não obteve resposta nem naquela noite e até agora.
Pio De Oliveira viu seu filho saudável na manhã daquela terça-feira, mas no dia seguinte já estava na morgue do Hospital Central de Maputo. Foi uma imagem que só o torturava a mente, por isso decidiu que o enterro devia ser feito logo na quinta-feira, 19 de Setembro. “Dali, logo percebi que não havia mais nada a fazer, até já tinham feito autópsia”.
O apoio de 26 mil meticais para suportar as despesas das cerimónias fúnebres foi dado num ambiente de informalidade pela Barqueiros. “Ele comprou o caixão, chamou-me para o carro e deu-me dez mil meticais. Eu lhe disse que esse valor era menor. Sentámos para fazer uma lista e no final deu-me mais um valor. Tudo totalizou 26 mil meticais”, contou o pai.
Mas o jurista Marcelo Nhangave entende que nestas situações tudo deve ser registado. “O empregador não pode, a seu belo prazer, atribuir as compensações aos lesados. Existem instrumentos legais que regulam esse processo”.
A OUTRA VÍTIMA
Além de Dércio, o sinistro do dia 17 de Setembro encontrou Reginaldo Manhiça, de 42 anos e que vivia numa casa arrendada no bairro dos pescadores havia um ano. Deste período, Reginaldo tinha por pagar seis meses, mas o atraso era entendido pela dona da residência, a senhora Angélica. "Agora que ele já tinha emprego prometera que iria pagar".
As cerimónias todas decorreram na casa arrendada, mas depois delas, a esposa do malogrado preferiu regressar à casa dos seus sogros no Zimpeto com os dois filhos. Neste momento, falar é o que menos lhe apetece. Tudo que faz é abraçar seus filhos, único sinal vivo de Reginaldo, o seu amor que morreu subitamente.
A mãe de Reginaldo casou-se, outra vez, com o senhor Paulo Langa, que se considera padrasto apenas pelo nome rigoroso do grau de parentesco, mas Reginaldo cresceu nas mãos do senhor Langa, daí que no meio da entrevista a emoção tomou conta e ele interrompeu o depoimento para evitar que as lágrimas contrariassem a ideia de que “homem não chora”.
Tal como na família de Dércio, a empresa Barqueiros prestou todo o apoio necessário e Langa diz não haver motivos de queixa quanto a isso. Aliás, a promessa é que até o veredito do tribunal, as famílias deverão receber 100% dos salários das duas vítimas.
Só que “dinheiro nenhum vai trazer de volta a vida do nosso filho”, disse, começando um desabafo que parte da falta da responsabilidade da empresa empreiteira da obra e desagua na falta de diligência de algumas instituições do Estado.
“Não se justifica que instituições como o Ministério das Obras Públicas, Ministério do Trabalho e outros apareçam apenas em momentos de acidentes, por que não averiguaram antes?”, questiona com um tom revoltado.
Sobre as indemnizações, será decidido depois do veredicto do tribunal. Até aqui, o que aconteceu é que a Barqueiros reuniu com as duas famílias e disse que será tudo tratado pela seguradora. Mas é aí onde mora o perigo.
O jurista Marcelo Nhangave alerta que se se concluir que a empresa teve culpa no acidente, a seguradora poderá não se responsabilizar. Então, “não adianta atribuir a responsabilidade à seguradora!”.
O QUE SE FAZ NA OBRA?
Nada, a resposta é nada! Na obra não se está a fazer absolutamente nada desde o dia 17 de Setembro, quando aconteceu o acidente. No local ninguém se faz presente senão os guardas. Alguns operários foram demitidos por falta de obras para alocá-los.
Uma testemunha muito ligada ao processo contou ao jornal "O País" que, afinal, os trabalhos daquele dia já tinham terminado, mas os superiores hierárquicos destacaram uma equipa de cerca de 15 funcionários que deviam continuar no local a espalhar o betão que acabara de ser colocado.
Em outras obras onde a Barqueiros é a empreiteira, os operários relatam falta de segurança no trabalho e dizem que o material que foi usado para a colocação daquela laje é impróprio para um edifício de 17 andares. É que, segundo os trabalhadores, o ferro usado na laje é número dez o que não devia ser para estes casos.
Os operários sustentam a sua tese indicando o facto de terem sido os ferros a cederem, o que terá originado o acidente que culminou com duas mortes e 12 feridos graves. Estes já estão fora de perigo, mas ainda não retomaram ao trabalho.
E A BARQUEIROS?
Deslocámo-nos à sede da empresa portuguesa. A resposta que obtivemos foi a de a empresa não tinha absolutamente nada a declara à imprensa, até porque o processo estava a ser tramitado via tribunal.
Aliás, fora da Barqueiros, o jornal “O País” esteve na MMD Mobiliária, proprietária da obra, que não se mostrou disponível a falar, tendo prometido chamar assim que quisesse falar. Posteriormente tentámos ligar e em nenhum momento fomos atendidos.
Fora esperar os resultados da Comissão de Inquérito, o Ministro das Obras Publicas, Habitação e Recursos Hídricos diz que agora só pode lamentar o ocorrido.