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Tenga: o “espelho” dos reassentamentos mal feitos pelo Estado

O Estado viola, de forma recorrente, a lei de reassentamento no país. É que, não poucas vezes, as pessoas são reassentadas em locais onde faltam serviços sociais básicos. Na localidade de Tenga, Província de Maputo, por exemplo, não há água, luz, vias de acesso, escolas nem unidades sanitárias por perto.

“Por aqui, nada está a andar. Estamos a ser tratados como se fôssemos mortos”, estas são as palavras de uma das moradoras da localidade de Tenga, distrito de Moamba, na Província de Maputo.

A equipa do “O País” viajou cerca de uma hora e quarenta minutos para a localidade de Tenga, no distrito de Moamba. A vegetação é de clima semi-árido e os caminhos parecem levar a um lugar inóspito, mas há lá gente com falta de um pouco de tudo. É nesta zona que foram reassentadas algumas famílias retiradas da Malanga, Cidade de Maputo, com o projecto da construção da Ponte Maputo-KaTembe.

Parte daquelas famílias é obrigada a consumir água suja.

“Aqui, em Tenga, sofremos muito com a questão da água. Nós buscamos a água num sítio que chamamos de ‘bobometa’. Designamos assim o poço, porque não usamos um recipiente para tirar a água, mas metemos o bidão ou balde”, disse Belmira Manjate, residente do posto administrativo de Tenga.

Este exercício é feito para conseguir água suja e imprópria para beber. Alexandre Matola, outro residente do posto administrativo de Tenga, contou que tem sentido os efeitos da água suja no seu corpo. “Se beber esta água, assim como está, pode causar-lhe diarreia e, ao usá-la para banho, sente comichão em todo o corpo, e isto nos dói”, disse.

Sem muitas opções, a população recorre à cinza e ao cimento para “purificar” a água. “Depois de buscar a água, procuramos cinza e colocamo-la num recipiente. Pelo menos quatro baldes. E, com a cinza, toda a sujidade fica em baixo. Este processo pode durar dois dias até podermos beber da água. Querendo, pode ferver. Para o caso de cimento, medimos uma colher e pomos num balde ou num tambor de 210 litros.

Colocamos a água e o processo dura três dias. O cimento e a sujidade vão para baixo. A água fica limpa, isso se não tivermos dinheiro para comprar Certeza (purificador de água)”, explicou um residente daquela localidade.

Estes residentes do posto administrativo de Tenga fazem parte dos cerca de 35% de moçambicanos que ainda não têm acesso à água segura em todo o país. Nesta zona, que é também de reassentamento, a unidade sanitária e a escola mais próxima estão a mais de três quilómetros.

Teresinha Nhanala explicou que a falta de escola nas proximidades expõe as crianças, sobretudo as mais pequenas, a vários riscos. “A escola está distante, sobretudo das crianças. As que estão na primeira classe sofrem. Vão até à sede da localidade de Tenga ou Malanga 2 para conseguir uma escola. Correm o risco de serem roubadas pelo caminho. Ficamos preocupados. Somos gratos quando vemos os nossos filhos a chegarem à casa. Não há unidade sanitária. Estamos a sofrer. Se estiver doente, nem sequer há transporte público nem vias de acesso. Estamos a sofrer”.

A única escola secundária alí existente foi inaugurada em 2019, e depende da chuva para ter água, e ainda aguarda energia eléctrica.

Ao longo da estrada, é possível ver postes de energia no chamado bairro “Malanga Dois”, mas o projecto de electrificação parou pelo caminho.

O incumprimento não é só em relação aos que foram reassentados em Tenga, mas quase todos os reassentamentos a nível do país.

Samanta Remane, directora-executiva do Centro Terra Viva, explicou que o grande problema é o facto de grande parte dos reassentamentos serem feitos apenas para cumprir os passos gerais para que o investimento seja implantado.

“O que se vê é que os reassentamentos têm um carácter mais administrativo de cumprir com os passos gerais para que o investimento seja implantado, e não olham para as pessoas e para objectivo principal do reassentamento que é garantir que os reassentados tenham tenham uma condição melhor ou igual a anterior. Nós acompanhamos nos últimos dez anos uma série de reassentamentos, mas se perguntar quantos foram bem sucedidos, se calhar nenhum.”

É que boa parte deles acontece numa zona que não há serviços sociais básicos. Os reassentados de Tenga são um exemplo.

“Como se percebe, é um reassentamento involuntário que resulta da iniciativa de alguém ou uma entidade para explorar determinado recurso ou colocar uma infra-estrutura, como foi o caso da ponte Maputo-KaTembe. Nesse sentido, há condições que têm que ser criadas, não se pode retirar as pessoas sem que haja condições para uma habitação condigna. Ou seja, casa para aquela família, condições de acessibilidade, portanto, poder deslocar-se para o mercado e para outros serviços sociais básicos, que estejam próximos daquelas pessoas.”

E é isto que estabelece o artigo 10 do Decreto 31/2012 sobre o Regulamento do Processo de Reassentamento Resultante de Actividades Económicas:

São dos direitos da população afectada:

⦁ Ter restabelecido o seu nível de renda igual ou superior ao anterior;

⦁ Ter restaurado o seu padrão de vida igual ou superior ao anterior;

⦁ Ser transportado com os seus bens para o novo local de residência;

⦁ Viver num espaço infra-estruturado com equipamentos sociais;

⦁ Ter espaço para praticar as suas actividades de subsistência;

⦁ Dar opinião em todo o processo de reassentamento.

Apesar de o regulamento falar só de reassentamento resultante de actividades económicas, há demais leis que abrem espaço para que o Estado crie condições sociais básicas para quaisquer reassentados.

Em situações de violação das normas de reassentamento, o Decreto 31/2012 abre espaço para a responsabilização da entidade à frente do processo e não do Estado. Aliás, ele só tem o papel de fiscalizador.

Enquanto isso, o Estado vai reassentando as pessoas em locais sem os serviços sociais básicos e não há um instrumento específico para a sua responsabilização.

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