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Suka, john, Vagabundus…

Foto: Mariano Silva

As portas da Sala Grande do Franco abriram às 18h37. Entre a curiosidade e a expectativa, como que telecomandados, todos, em sintonia consentida, lá se acomodaram para uma noite que poucos sabiam como terminaria.

Ao contrário do que tem sido recorrente, os bailarinos, perto dos assentos, é que receberam o público, sempre com cantos vibrantes. Os homens, de tronco nu. A exibirem o peito, os músculos, a aura e o vigor bantu.

– Ui, irmã, veja só que pecado!

Meio perdida numa chamada telefónica despropositada, a menina ao lado, uns 27 anos de idade, tentou relacionar o suspiro da amiga à personagem à sua frente. Viu um barrigudo meio parecido com Ngungunhane: gordo, não tão baixinho, feio e rude. Não compreendeu a afirmação.

– Não esse, sua distraída, aquele…

Como se tivesse escutado, Osvaldo Passirivo endureceu a expressão. Aparentemente envaidecido, encheu o peito, imerso na personagem e na representação. As marandzas perceberam e não gostaram da indiferença. Então caminharam e sentaram-se na quarta fila, contando a partir do palco.

– É um passarinho…

Disse apaixonada.

Passirivo

 Sem importar-se com a correcção, a outra continuou.

– O gajo leva-te directamente ao céu.

O diálogo das marandzas era muito interessante. Mas até elas perceberam que, se quisessem curtir a noite, tinham de se calar. Afinal, o coreógrafo do espectáculo, Ídio Chichava, decidiu surpreender o auditório desde o princípio. Assim, sem que ninguém anunciasse nada, a performance foi imergindo todos no miserável universo dos Vagabundus. No qual, à excepção da alegria no coração, não há mais nada.

Ao todo, 13 bailarinos apresentaram-se no palco, nomeadamente, Açucena Chemane, Arminda Teimezira, Calton Muholove, Cristina Matola, Fernando Machaieie, Judite Novela, Mauro Sigauque, Martins Tuvanji, Nilégio Cossa, Osvaldo Passirivo, Patrick Manuel Sitoe, Stela Matsombe e Vasco Sitoe. Portanto, além de um certo pecado, havia alguma redenção disfarçada no corpo de mulheres. Elas também estavam trajadas de uns calções curtos, brilhantes e sugestivos. Mas não “imitaram” os homens em tudo, que o leitor mais pervertido pode estar a pensar coisas… Traziam um top preto e curto, com os umbigos de todas à vista, inspirando conforto e comodidade.

Ali estavam todos eles. Enigmáticos, cantando uma cancão popular que soa à acção de graça. Em ronga, diziam eles, “Não temos nada, além de alegria no coração”. E o refrão foi interpretado tantas vezes, numa afinação coral contagiante e surpreendente.

– Esses gajos cantam bem!

Disse um jornalista armado em crítico de arte. Joana Mbalango, actriz de primeira água, anuiu e, sem saber porquê, deixou-se invadir por sentimentos misturados, vivendo o espectáculo como se ela própria fosse uma encenação. Só despertou daquele devaneio longo quando a amiga, num sussurro, disparou:

– Suka, john, Vagabundus são maus! Socorro…

Joana tornou-se John. Um John que, em Moçambique, também é bay e bro. Mas, quanto ao socorro, na Sala Grande ninguém estava para socorrer a ninguém. Todas as atenções estavam no palco. Entre os espectadores, um silêncio que nem lembrava um mosquito a buzinar-nos a orelha. De facto, Ídio Chichava conseguiu montar uma coreografia “asfixiante”, que capta a atenção das pessoas quase na sua totalidade.

Como se viu, na verdade, Vagabundus não é sobre dança. O espectáculo estreado na Europa há três anos, apresentado pela primeira vez em Moçambique, por um lado, é muito mais do que um exercício coreográfico. Vagabundus é uma narrativa total e completa, uma analogia cruel sobre o drama humano em situações de abandono ou indiferença. O que começa com uma canção popular, rapidamente se transforma numa encenação de sentimentos e emoções complexas, nas quais o corpo é a bênção e a doação.

Por outro lado, Vagabundus é um jogo de equilíbrios, entre a arte de encenar com tão poucos adereços e a vocação dos artistas. Em sintonia, os 13 contaram uma narrativa que abraça o caos, e, paradoxalmente, a razão. Por isso o espectáculo questiona o sentido da existência quando pouco ou nada se tem para sorrir.

O som desempenha um papel fundamental. Além das canções, todas entoadas pelos próprios bailarinos num fôlego invejável, afinados mais do que muitas estrelas da música, a intensidade eufónica imprime na coreografia condições atmosféricas dissemelhantes. Num momento, os Vagabundus são miseravelmente elegíacos, revelando-se incapazes de disfarçar a dor que os invade as entranhas. Noutros momentos, são tão porta-vozes das lágrimas que gelam o mundo quanto mensageiros da esperança resumida no refrão da canção inaugural. Por conseguinte, Vagabundus evoluiu da melancolia para a vivacidade. Pelo meio, há macomias, mediterrâneos, gazas e dombass… Gente moribunda, esquecida e largada à sua sorte. Pelo meio, há um enredo com bifurcações extraordinárias, nas quais os movimentos (coordenados e aparentemente improvisados) materializam a intensidade do que é sentido. Nesse aspecto, o som e o ritmo são importantes. Dependendo da forma como os pés tocam o palco, a emoção sugerida ganha  consistência.

Vagabundus é o resultado de maningue cenas: xigubo, makwaela, mapiko, canto coral e representação. No mínimo…

Visualmente intrigante, o espectáculo também é um conjunto de fotografias em movimento, num cenário em que o todo, de facto, é a totalidade de uma maioria oprimida pela vida que se esvai a cada grito pela liberdade. É uma produção agridoce, que faz chorar, porque chorar também é bom, e faz sorrir como um meio de sobrevivência. A narrativa é o centro de tudo. Os corpos, diria Roman Jakobson, são pretextos para expressarem lições sobre o som e o sentido – Nos corpos dos bailarinos nos revemos na nossa intimidade e no nosso preconceito.

Com os Vagabundus, consciente ou inconscientemente, Ídio Chichava homenageia os peregrinos do mundo, aqueles que valem as trochas que levam à cabeça ou o sonho que lhes é proibido. No fundo, a coreografia é sobre os invisíveis, sobre o grito dos marginalizados que o mundo não quer e não sabe ouvir. É uma ode à dignidade, uma peça onde se cruzam teorias coreográficas tradicionais e contemporâneas numa linguagem universal.

Entre o dramático e trágico, a obra explora as crises existenciais dos mafunda djonis espalhados por além-fronteiras. Talvez, por encarnarem tantas vidas, os bailarinos fartam-se de transpirar pelos poros da pele. É um espectáculo fisicamente exigente. Em 80 minutos, os artistas exploram um pouco de tudo, desde a existência à resistência. Sempre em ascensão. Há-de ser por isso que facilmente manipulam o público, que sofre, chora, grita, canta e dança a plenos pulmões. Foi o que se viu lá mais para fim:

Ho lo lo lo lo lo lo lo... Ho lo lo lo

Cantando o ininteligível, numa só voz, os bailarinos convidaram os espectadores ao palco. Inclusive, as duas marandzas.

– Irmã, é agora ou nunca. Me acompanha para não ouvires dizer…

Entretanto Passarinho, quer dizer, Passirivo não sentiu o toque às costas. Devia estar a pensar que, de certa forma, somos todos Vagabundus.

 

 

 

 

 

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