Por: José Paulo Pinto Lobo
Palma. Macomia, Mocímboa da Praia, Nangade, Muidumbe.
Os bárbaros e selváticos ataques em Cabo Delgado fizeram-me insónias, logo a mim que mal pouso a cabeça na almofada, adormeço.
Vagueava o meu pensamento sonolento por entre as sombras do quarto às 4 horas da madrugada, quando subitamente a minha mente é assaltada por poetas e prosadores. Poetas? Estranho, visto que a minha relação com a poesia é idêntica à que tenho com o vinho. «Heresia!» clamam os literatos e os enófilos.
Como faço para apreciar ambos? Simples! Pergunto-me que sensações me provocam? O que me fazem sentir? Gosto ou não gosto? E pronto!
Todo este intróito para referir que Galeano foi o primeiro dos invasores, o qual valendo-se de Birri discorria sobre a utopia. «Então para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.» Brilhante!
Mas… caminhar para onde?
Alguém me sopra ao ouvido «para a frente é que é o caminho». Pois… e se à frente estiver um precipício? Depois é, a minha frente ou a tua frente? Para que ponto cardeal estás virado?
Carrol responde sarcasticamente. «Estás a fazer a mesma pergunta que a Alice? Olha que a resposta é a mesma».
«Gato Cheshire… pode me dizer qual o caminho que eu devo tomar?
Isso depende muito do lugar para onde você quer ir – disse o Gato.
Eu não sei para onde ir! – disse Alice.
Se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve.»
Sinto então uma mão carinhosa no ombro e a voz de José Régio dizendo: «Não ligues, faz como eu».
«Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
Não sei para onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!»
Explodem-me entretanto pensamentos perturbadores. E se afinal a utopia tiver sido mais uma distopia, com os seus julgamentos sumários, com os fuzilamentos em praça pública e o terror da reeducação? Mais os assassinatos e prisões de jornalistas? E a instrumentalização do patriotismo como forma de exclusão?
Escarnece George Orwell: «Big Brother is watching you» e «Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais que outros».
E as nossas cumplicidades silenciosas, encapuçadas em fé cega em utopias sonhadas como realizáveis e filtradas pelos nossos olhos trópico-ocidentalizados marejados de boas intenções de princípios cristãos não assumidos e de culpas retroactivas não nossas?
Kafka acena-me de longe com “O Processo”. Quer ele assombrar-me com pesadelos surreais?
Se refutarmos crenças e dogmas dos tempos de antanho perdemo-nos de nós próprios?
Responde Jorge Rebelo: «Ora chegou um tempo…»
«Tenho de novo que aprender
a perturbar o universo, a recusar
o aconchego dos palácios,
a partilhar com os deserdados
o anseio da virtude.
O outro Eu me ensinara.»
E se a guerra tiver sido mesmo escolhida pelo descaso dado aos inúmeros sinais de insatisfação e de revolta com a injusta distribuição e pérfida ostentação de riqueza?
Porquê? Clama Noémia de Sousa, com palavras vindas do passado e tornadas tão presentes:
«Por que é que as acácias de repente
floriram flores de sangue?
Por que é que as noites já não são calmas e doces,
por que são agora carregadas de electricidade
e longas, longas?
Ah, por que é que os negros já não gemem,
noite fora,
Por que é que os negros gritam,
gritam à luz do dia?»
Vagueio por entre os silêncios atrapalhados e a auto-estima e auto-contentamento bafientos de quem eu esperava bem mais e tento escutar os tambores silenciados do mapiko em Cabo Delgado.
Repentinamente, ouço Craveirinha: «Convoca os espíritos e acompanha-me no grito».
«Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.
Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo de [Cabo Delgado]
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.»
Não consigo dormir, às voltas na cama e com vários nós na cabeça.
Ressoa incessantemente no meu pensamento a frase dramática da nossa vida: «Valeu a pena?»
Escuto então Pessoa:
«Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.»
E, assim, finalmente adormeço.