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Sete dias de serviços de saúde condicionados

O maior valor está em risco. Há pacientes que se deitam sob o soalho, sob o olhar indiferente dos profissionais da bata branca. Uma semana depois, Governo e médicos trocam mimos na imprensa, construindo uma cortina de ferro que fecha o diálogo.

Os historiadores dizem que os ciclos da história se repetem. Provavelmente, a actual greve dos médicos confirma essa tese, porque, nove anos depois, Moçambique volta a assistir a uma greve dos médicos, com duas similaridades: no fim dos mandatos presidenciais e com o salário na base da reivindicação.

Em 2013, era o Presidente Armando Guebuza. O seu Governo bateu-se literalmente com os médicos que queriam 100% de aumento do salário-base e uma subida de 10 para 35% do subsídio de risco. Essa greve durou 24 dias.

Desta vez, é Filipe Nyusi na presidência. Enfrenta o mesmo problema, cujo período de duração anunciado pela Associação Médica de Moçambique é de 21 dias.

Passa uma semana e o braço de ferro continua. Das declarações públicas dos grevistas e do Governo, denota-se uma crispação total, que bloqueia qualquer possibilidade de diálogo, por isso a imprensa tem sido o veículo das mensagens de cada lado.

No meio desta contenda, está a população enferma, entregue à sua sorte. Parece um paradoxo, num país onde se diz que 70% da população recorre, primeiro, à medicina tradicional para curar as suas doenças.

No Norte, “o Hospital Central de Nampula, numa situação normal, é um problema. Imagina agora com a greve!”, desabafa um médico especialista afecto àquela que é a maior unidade sanitária que dá assistência às províncias de Nampula, Cabo Delgado, Niassa e parte da Zambézia. Por razões óbvias, não se identifica porque, em conflito aparente, faz parte dos que devem garantir o atendimento ao público, mas identifica-se com as motivações da greve.

Os pacientes fazem longas horas de espera por uma consulta médica nos serviços de urgência, bem como nas consultas externas autorizadas para funcionarem enquanto vigorar a greve.

De pé, apoiando-se no encosto de um banco metálico, com o corpo a denotar fraqueza, Angerone Mukenga cruza o olhar com o autor destas entrelinhas. Com os olhos muito abertos, quase sem pestanejar, o doente parece pedir, em surdina, para dar uma entrevista.

Estamos na área de espera dos serviços de urgência. É quase meio-dia e a lotação nem permite a circulação de macas. Mukenga consegue o que parecia tanto desejar e sem delongas, desabafa: “estou aqui desde as 6h00 da manhã e ainda não fui atendido. Estou muito mal”.

Os bancos nos locais de espera estão preenchidos. A imagem predominante é de doentes vencidos pelo cansaço. Devido ao atendimento moroso, deitar-se sob o soalho é a opção para alguns doentes.

Os pouquíssimos médicos em serviço são militares, estrangeiros e alguns moçambicanos que garantem serviços mínimos. “O atendimento está a correr normalmente, apesar de alguma enchente”, diz Adamugy Sacugy que segura na mão esquerda a chapa do raio-x do filho.

A direcção do hospital assegura que os grevistas estão a garantir serviços mínimos, mas não restam dúvidas de que, nos próximos dias, a situação pode complicar-se mais, porque já começou a chover em Nampula e, sendo assim, há possibilidade de mais casos de doenças típicas de época, como é o caso de malária e diarreias.

“Espero que a greve não continue. Que haja uma negociação entre o Governo e os médicos; que haja um acordo, porque, se porventura isto continuar, podemos ter uma situação não muito boa para todos, tanto para o médico, assim como para os doentes”, alerta a médica pediatra Dalva Khossa, porta-voz do Hospital Central de Nampula.

O mesmo cenário verifica-se no Hospital Provincial de Tete. Devido às longas horas de espera e falta de atendimento, alguns doentes com consulta médica marcada para esta segunda-feira decidiram abandonar o hospital.

“Estou cá desde as 7h00 da manhã e estão a dizer-se para marcar nova consulta. Devido à demora no atendimento, procurei saber do paradeiro do médico, e disseram-me que não estava. Sendo assim, a única decisão é regressar à casa, mas são custos porque saio da cidade de Moatize”, lamenta um dos doentes que fala em anonimato.

O retrato do Norte e do Centro é basicamente o mesmo do Sul.

O que está em jogo é dinheiro e tudo começa com a Tabela Salarial Única (TSU) que o Governo aprovou por lei para reduzir os níveis salariais e reduzir o fosso entre profissionais da Função Pública. Nessa senda, muita coisa correu mal, com erros que se consubstanciam na desvalorização de especialistas e consideração de detentores de cargos de chefia, situação que continua a ser corrigida.

Dos 14 pontos do caderno reivindicativo dos médicos, consta o pedido de manutenção do subsídio de exclusividade em 40% e o decreto que aprova a TSU fixa em 5%. Consta também a exigência de manutenção do subsídio de turno em 30%; o pagamento da remuneração do trabalho extraordinário e o reajuste do subsídio de localização em 25%.

Em termos de enquadramento nos escalões da tabela que regula a remuneração na Função Pública, os médicos querem estar nos níveis 16 a 18, para médicos de clínica geral, e níveis 19 a 21, para médicos especialistas. Porém, de acordo com os actuais critérios da TSU, o enquadramento dos médicos de clínica geral começa a partir do nível 13Ae os especialistas, do nível 16A, o que mostra que um médico especialista que já atingiu o topo de progressão regride para o nível 16ª, porque os procedimentos actuais não o colocam no topo da carreira.

O nosso jornal sabe que o Governo e os médicos estiveram numa reunião até noite adentro, esta segunda-feira, sem se saber em que ponto se chegou, uma vez que tanto o bastonário da Ordem dos Médicos, como o presidente da Associação Médica de Moçambique não corresponderam aos nossos contactos.

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