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Sakifo: a fotografia de um festival eclético

O Sakifo Musik Festival decorreu entre sexta-feira e domingo, na Cidade de Saint-Pierre, na Ilha Reunião. Pelos cinco palcos do evento passaram vários músicos africanos, incluindo os moçambicanos Tiago Correia-Paulo e Frank Paco.

 

Procurando no mapa, a Île de La Réunion parece um lugar perdido no oceano. Muitas vezes, aquele território francês é abafado pela gigante Madagáscar, quase ali ao lado. Há aqui, na verdade, um caso para dizer que as máximas conseguem resumir em palavras o que de outro modo geraria equívocos, ou seja, “parecer não é ser”. Então, ali no Índico, entre Moçambique e Maurícias, existe um território que parece pequeno, mas, culturalmente, é um lugar diverso, plural, onde se promovem encontros e intercâmbios artísticos. Não fugindo a essa premissa, a Cidade de Saint-Pierre abriu-se ao mundo, nos dias 3, 4 e 5 deste mês para receber artistas, produtores, programadores, directores, agentes das indústrias culturais e criativas e amantes da música em geral no Sakifo Musik Festival.

Ao longo de três noites, apresentaram-se em palco músicos de diferentes ritmos e provenientes de vários cantos de África. Por exemplo, Stogie T. O premiado autor sul-africano levou ao Sakifo 2022 sonoridades do hip-hop numa actuação exemplar com banda. Ao longo do espectáculo, o rapper partilhou a sua experiência e prendeu o público à sua actuação em mais ou menos 60 minutos.

No Sakifo existem cinco palcos musicais montados, nos quais os artistas actuam simultaneamente. Em outras palavras, o público do festival nunca está condicionado a ver o que não quer, pois possui imensas ofertas. Quando a performance não é exactamente o que espera, as pessoas lá mudam de palco, procurando aproveitar ao máximo a noite fresca à beira-mar. Portanto, quando um artista tem a maior parte do seu público do princípio ao fim do espectáculo, há muito que se lhe diga e Stogie T distinguiu-se naturalmente numa actuação equilibrada também graças à sua corista.

Além de Stogie T, actuaram outros sul-africanos na edição 2022 do Sakifo. Casos de BLK JKS e Bongesiwe Mabandla, que, inclusive, cantou no Centro Cultural Franco-Moçambicano, na Cidade de Maputo, há dois anos. Muito focado no álbum Iimini (2020), o sul-africano tocou com alma e amor, procurando levar à sua audiência sonoridades de algum modo taciturnas, embora muito consistentes. Entre as músicas bem recebidas do cantor não faltou “Ndokulandela” e, claro, “Jikeleza”, que trata do sofrimento, da fé e de amor.

Metade do crédito da performance do sul-africano pertenceu a um artista moçambicano, Tiago Correia-Paulo, que tocou um pouco de tudo: bateria, guitarra, controlou os pedais sonoros e fez misturas ao vivo pelo computador. A actuação, com efeito, foi comovente, de tal maneira que nem o factor língua bantu foi problema para os franceses e para as pessoas de outras nacionalidades que não entendiam o que Mabandla dizia. Venceu a linguagem musical universal. Talvez, por isso, ao cantor apeteceu ir partilhar a boa recepção que recebeu com o próprio público, de forma mais intimista. Lembrando-se que se encontrava na praia de Saint-Pierre, Bongesiwe Mabandla, a certa altura, ficou de tronco nu, saltou as barreiras que isolam o palco e lá foi cantar no meio das pessoas como quem pretendesse sussurrar ao ouvido das francesas que logo se precipitaram a captar o momento com recurso aos telemóveis. No palco, o beat continuou com o mesmo rigor e sintonizado ao cantor. À medida da sua altura, eventualmente um metro e noventa centímetros, Tiago Correia-Paulo foi gigante ao tocar as notas do Iimini, esse álbum tão inspirado no contexto sociocultural moçambicano.

Ora, embora Bongesiwe e Tiago Correia-Paulo tenham garantido elevados instantes de música feita com paixão e serenidade, a grande “revelação” da noite de abertura e, quiçá, da edição 2022 do Sakifo foi a banda sul-africana BCUC (Bantu Continua Uhuru Consciousness). Antes de subirem ao palco, o dossier de imprensa da organização do festival prevenira: “Tremores telúricos esperados, com um grupo que desconstrói todos os formatos musicais para reunir, na mesma energia, o antigo e o moderno”. Neste caso, a palavra foi incapaz de descrever a imagem. A apresentação de BCUC foi mais do desconstruir, foi, sim, muito além de “uma experiência sonora e visual singular”.

Com um vigor de dar inveja ao mais viril entre os homens, os sete BCUC redefiniram o que se pode considerar conceitos de espectáculo. Explodiram com as notas altas sem que isso fugisse do seu controlo vocal e/ou sonoro. Em jeito de prece, como que a exorcizarem qualquer coisa para, depois, a lançarem ao mar, a poucos metros de palco, BCUC apresentou em Saint-Pierre o que poucas pessoas tinham visto antes. Toda gente ficou de boca aberta: artistas, jornalistas (mesmo sul-africanos), produtores e, inclusive, o director de um dos mais prestigiados festivais do continente, Sauti za Busara, de Zanzibar (Tanzania), Mahmoud Yusuf.

Enquanto BCUC actuou e mesmo depois, uma expressão repetiu-se: Amazing (incrível)! Os rapazes (e uma rapariga corista) sul-africanos não ouviram a palavra a repetir-se, mas perceberam que cantar e tocar em Saint-Pierre era o mesmo que o fazer em alguma rua do SOWETO, de onde são provenientes. Por isso, esqueceram-se que na cidade há muita gente que não fala inglês, pois o francês lhes resolve todos os problemas. Então, quando tinha de ser, punham-se a falar em inglês e, mesmo quem não percebia a língua de Shakespeare, predispôs-se a inventar significados. As pessoas cantaram o refrão que podiam, dançaram desordenadamente, assobiaram, “enlouqueceram” e “viciaram-se”. Logo, quando o vocalista da banda disse “Go down”, imediatamente, quase toda a gente ficou de cócoras. Depois vieram os saltos e a noite que parecia fresca, a rondar os 19ºC, de repetente, ficou quente “tipo” 39ºC.

A actuação dos sul-africanos foi uma mistura de música e educação física. Alguém da produção do Sakifo Musik Festival deveria ter prevenido o público a vestir-se de forma mais apropriada, pois até o vocalista da banda estava de umas calças de treino e uma camiseta. Portanto, à vontade para exercer qualquer tipo de movimento, inclusive, improvisando passos de xigubo sem desafinação.

Não há muita gente no mundo que tenha visto uma actuação electrizante como a de BCUC em Saint-Pierre. Aquilo foi intensidade do princípio ao fim, ora com apitos, ora com gritos aparentemente de quem entra em transe. Anway. A lógica da música dos BCUC é outra e quando a certa altura o vocalista disse Agora restam-vos oito minutos. Aproveitem como se fossem os últimos minutos das vossas vidas, ninguém quis acreditar que o espectáculo estava a chegar ao fim. As pessoas já estavam todas viciadas que se esqueceram que haviam outros quatro palcos naquele recinto. Entre os temas do BCUC que mais “furor” fez no Sakifo destaca-se “Moya”, um hino aos deuses da música tradicional bantu, se é que existem.

Não obstante, na edição 2022 do Sakifo Musik Festival também actuou Tiken Jah Fakoly, um cantor de reggae costa-marfinense que presa e canta a liberdade. Mais ou menos ao estilo Azagaia, o cantor usa a música como arma de combate, ora contra a política do seu país, do seu continente e do mundo a que pertence, ora envolvendo-se em temas de esperança, cantando por um futuro melhor. No palco principal do Sakifo Musik Festival, talvez pela sua energia performativa ou pelo conteúdo interventivo das suas músicas, houve uma das maiores audiências desta edição do evento.  Na mesma noite e no mesmo palco onde actuaram Tiken Jah Fakoly e BCUC, quem também captou atenção de muita audiência foi Texas. A banda escocesa investiu em músicas famosas do seu repertório pop-rock, em determinadas circunstâncias, com ovacionadas interacções com o público.  A festa da música, no último fim-de-semana, também foi “pintada” com a sonoridade pop de Clara, um cantora francesa que nasceu na Île de La Réunion/ Ilha Reunião e que procura ser uma voz robusta para as mulheres que sonham em atingir a plenitude dos seus sonhos e dos seus desejos.  Pelos cinco intensos palcos do Sakifo Musik Festival, ao longo de três noites, também promoveram sonoridades ecléticas Destyn Maloya, Joy D, Loryzine Maloya, Msaki e Kombo. Este trio composto por duas francesas, Melannie Bourire (vocalista e instrumentais) e Lise Van Dooren (teclado) e um baterista moçambicano, Frank Paco, tocou temas do álbum Tizane amaré, muito voltado às variadas possibilidades do jazz. Em termos rítmicos, portanto, ouviu-se um pouco de tudo na edição 2022 do Sakifo Musik Festival: soul, hip-hop, rock, world music e, claro, maloya, estilo musical da Île de La Réunion, onde o Oceano Índico tem sido uma porta aberta para as sonoridades ecléticas africanas e de outras partes do mundo.

 

 

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