E o debate continua no digital, sem deixar que a pandemia do novo coronavírus cause severas paragens, a Associação dos Escritores Moçambicanos realizou mais uma sessão de “No Gume da Palavra”, desta vez, para leitura crítica da obra do escritor Aurélio Furdela, “Saga d’Ouro”, pelo professor Aurélio Ginja.
Para dar um ar natural e de afectos, a voz e a guitarra de Aniceto Guibiça fizeram as honras da casa, um início do evento à medida da leitura de uma obra cuja estória se funde a História.
Ao se expor na janela aberta ao mundo, através da plataforma de comunicação ZOOM Cloud Meetings, Aniceto Guibiça, cuja música é por muitos conhecida e o qualifica como um dos expoente de intervenção social, vincando os males da ganância, o músico viu-se surpreendido no auditório, pela presença do filho e netos, a participar no evento a partir dos Estados Unidos de América, facto que Guibiça fez questão de destacar, visivelmente emocionado, no final da palestra, pois há bastante tempo que o músico decano não os via estando em acção num palco.
Depois, a música deu lugar a uma reflexão sobre o livro, profunda e interativa, a cargo de Aurélio Ginja como palestrante e Nelson Lineu na moderação, numa clara demonstração do poder das tecnologias, nestes tempos que exigem mais da imaginação e da criatividade do que meios materiais para continuar a manter vivas as nossas artes e cultura.
Alías, ao colhermos o sentimento do músico Aniceto Guibiça, este revelou sentir-se surpreendido com a nova forma de realizar eventos, adoptada pela AEMO, num exercicio de contornar o isolamento social imposto pela COVID-19. “Não imaginava que podia cantar e ter uma plateia através da internet, uma plateia que pudesse cantar e interagir com ela. Ver o meu filho e os meus netos de tão longe a acompanhar-me e aplaudir foi uma coisa emocionante.” Rematou o músico, sem deixar de lançar um repto às demais agremiações culturais, no sentido de seguir o exemplo dos escritores, que “estão de parabéns pela iniciativa e por se lembrarem dos músicos. Está de parabens o Secretário da AEMO, que me convidou para abrilhantar o evento”.
“Acho que a SOMAS e a Associação dos Músicos deviam abraçar estas plataformas para fazerem com que nós artistas não paremos e cheguemos mais longe. Isto é incrível. Estou muito feliz. Nunca me vou esquecer.” – Assim finalizou o autor do sucesso “Eh male”, música que na década de 90 liderou os tops da música ligeira moçambicana, e que até hoje ainda causa emoção e reflexão.
Iniciando a sua intervenção, na sessão de leitura de “Saga d’Ouro”, Aurelio Ginja começou por destacar que este é um livro recheado de traições, feitiçarias e disputas de poder. “E Furdela escreve com mãos gémeas. A sua mão direita escreve História com ciência e outra com, a esquerda, escreve estória com “E”. Começou por dizer Aurélio Ginja no princípio da leitura crítica à obra de Aurélio Furdela.
Ao dar sequência a conversa, no encontro on-line realizado na tarde da passada sexta-feira, Aurélio Ginja mergulhou numa exaustiva explanação, percorreu o livro vencedor de Prémio Eugénio Lisboa, 2019, na mesma medida que sublinhava a sua dimensão Histórica, como ponto de partida do autor escapelzado, o palestrante despertava o auditório para as marcas de uma narrativa ficcional. Para a primeira dimensão, destacou que “Saga d’Ouro” fundamenta-se no choque cultural que foi gerado entre África Ásia e Europa, procurando resgatar um conflito inerente a expedição militar de Francisco Barreto que em 1571 é enviado pelos portugueses a fim de vingar a morte do Padre Gonçalves Silvério, acusado de prática de feitiçaria e morto por decreto do Imperador de Mwenemutapa em tempos, Negomo, antecessor de Gatsi Lucere.
Ginja encontra aí a História na estória de Furdela, portanto, essa parte escrita pela mão direita do autor. Com a mão esquerda, prossegue o crítico, Furdela incorpora outros elementos na obra, percorre através da imaginação o Vale do Zambeze, leva o leitor a cenários de um imperador que quer manter-se perpetuamente no poder, que oprime e comete tremendas injustiças, em meio a expedição portuguesa, que inclui a coisificação do ser humano.
Nesse ponto o crítico estabelece uma ligação antes feita em uma resenha do poeta Japone Arijuane, em que conclui que fica-se com uma “dúbia sensação de se estar a repetir a História”, ao contrário do ideal que seria o conhecimento do passado para pespectivar o futuro e evitar os erros já cometidos, aprendendo com as experiências positivas.
“Assim continua a existir um Zumbidzai [personagem feiticeira ao serviço do imperador], feiticeiro ao qual as mãos do Poder procuram a todo custo meios para reprimr os seus opositores, um cenário que se repete e torna a História numa tremenda realidade.” – analisa o crítico, para quem Furdela ao resgatar o imperador Gatsi Rucere, conseguiu trazer a tona o diabólico que existe e acompanha uma outra dimensão do ser humano.
Nas leituras de Ginja, “Saga d’Ouro” é o retrato, ainda que sombrio e desagradável, bem conseguido da contemporaneidade do nosso contexto. A confluência do diabólico e simbólico no ser humano, isto é, do divergente e do convergente, sendo que nesse conflito de personalidade, o diabólico quando alimentado é gerador de intrigas, da violência, da guerra e a opressão que “infestam” a sociedade.
Nessa obra, Aurélio Furdela, que por sinal é formado em História pela Universidade Eduardo Mondlane, mostra-se signatário de uma tradição da literatura histórica em Moçambique, a exemplos de Mia Couto e, sobretudo, de Ungulani Ba Ka Khosa, até na técnica, ao recorrer à explicação dos termos bantus nas entrelinhas da narrativa, mas que este em “Saga d’Ouro acrescenta as notas de rodapé, nesse exercício de evitar os glossários que obrigariam o leitor a interrupções para ir em busca dos significados dos termos. Esse segmento da tradição literária está em aliança com o seu talento – completando os signos do fazer literário – que está por conta própria os recursos para construir um romance digno de apreciação positiva do professor Aurélio Ginja.
Evocando o talento do autor, que chamou de “artimanhas”, Ginja recorre à presença comungada e articulada de cenários e agoiros sombrios na narrativa, à mistura do cómico e o uso dos animais que, aliás, já é uma assinatura indelével de Furdela, como se verifica no livro anterior “As Hienas Também Sorriem”.
Neste último livro, “há heróis e vilões, o trágico e o cómico, as crenças, as assombrações e há todo um conjunto de mitos que não são só criações do autor, como premeiam o imaginário popular”, refere o crítico que acrescenta “verificam-se animais que nos fazem mergulhar para o lado oculto, como o corvo que na obra quase se assume um personagem, apontando o indício de tragédias que possam ocorrer; há o crocodilo, a serpente, as impertinentes moscas que aparecem em momentos perturbadores da narrativa.” – Um ponto de chegada de toda a experiência de vida de outrora, mas também um ponto de partida para levar a esperança do amanhã.
E em última análise, Ginja situa “Saga d’Ouro” como uma “continuidade de memórias e do sonho das vidas sonhadas e vividas antes de nós. Essa estória, intermeada por outras estórias que corporizam o romance, é como se fosse um apelo para construirmos no futuro uma sociedade mais humana”.
De referir que esta conversa sobre “Saga d’Ouro”, contou com uma plateia bastante atenta, composta por leitores e estudiosos de literaturas de Moçambique, quer a nivel nacional e do estrangeiro, aqui com destaque a presença da Professora de literaturas africanas de língua portuguesa, Carmen Tindo Secco, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A actriz Ana Magaia deu voz às palavras do narrador de “Saga d’Ouro”, ao fazer uma leitura de um excerto da obra. A poesia de Sangare Okapi foi outra presença do evento, com os poemas de “Os poros da concha”, declamados por Vânia Raquelina.
A próxima realização de “No Gume da Palavra”, ciclo de palestras e debates da AEMO patrocinado pela Austral Seguros, contará com o tema “Democracia, no Contexto da Diversidade Cultural Moçambicana”, tendo como oradores os professores José Castiano e Eduardo Sitoe, com moderação de Filimone Meigos.