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RUI NOGAR: Um poeta esquecido no tempo – 2006*

“Há os que vivem nas trevas e os que vivem na luz.

É fácil ver os da luz, mas ninguém vê os das trevas.”

Bertolt Brecht

Convidado a dar o meu contributo no XVIII Curso de Literatura de Língua Portuguesa, fui ao escrínio onde estão guardados os tesouros da história da literatura moçambicana, de pouca idade, embora, mas significativa para a marcha da nossa história geral. Muita coisa lá encontrei, o que me deu, naturalmente oportunidade de opção em relação à minha tentativa de abordagem do tema proposto para este curso: <<A Pluralidade das Escritas: os Imaginários e os Discursos em Língua Portuguesa>>. Perguntei-me se não estaríamos a incorrer numa barbaridade, obliterando das nossas considerações académicas, algumas vozes que deram o corpo ao manifesto na nossa gesta literária, ao longo das distintas épocas por que passaram e contribuíram significativamente, com as suas criações para os Imaginários e os Discursos em Língua Portuguesa e para o seu desenvolvimento, no âmbito da Pluralidade das Escritas, tendo em linha de conta que esta língua é um veículo comunicacional de cerca de 300 milhões de falantes em todo o mundo (oito países: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste e comunidades esparsas pelos diversos quadrantes do nosso planeta). Todos estes falantes expressam, com a língua portuguesa, as suas vivências quotidianas, ou seja, a realidade em que cada um se vê envolvido onde quer que esteja, convergindo toda essa experiência plural para os anais da história de uma língua dinâmica tornada visível pelas múltiplas escritas dos criadores literários que a têm, tanto como sua língua nacional ou materna ou, por contingências incontornáveis, como língua oficial (tal é o caso de Moçambique).

Busquei, Rui Nogar, um dos escritores sugeridos pela organização do curso, porque achei ser esta uma soberana oportunidade de se trazer à tona um nome que muito deu de si para a literatura de língua portuguesa, particularmente, a moçambicana.

Acredito que poucos aqui presentes, por conta da sua maturidade, sabem substancialmente quem é ou foi Rui Nogar. Mas acredito, também, que muitos, porque muito jovens ainda e o material sobre este poeta é exíguo, sabem apenas que ele é  um poeta moçambicano e nada mais. As razões são várias, intermináveis e plausíveis, emergindo com mais destaque o facto de este poeta não ter merecido, ainda, um estudo académico sistematizado e exaustivo da sua obra. Muito pouco existe escrito sobre Rui Nogar e a sua obra poética, o que, em medida grande empobrece o nosso panorama literário, porquanto ele faz parte da galeria histórica da nossa literatura, pela sua dedicação, pela sua entrega à causa literária moçambicana desde tenra idade.

Rui Nogar, pseudónimo de Francisco Rui Moniz Barreto, filho de pais goeses, tornou-se Rui Nogar ainda nos anos 50, tendo-se iniciado como poeta, na Lourenço Marques colonial, nos jornais Itinerário e Brado Africano.

Itinerário foi uma publicação mensal de letras, artes, ciência e crítica que existiu em Lourenço Marques, entre os anos 1941 e 1955. Tendo, o seu primeiro número, sido publicado a 7 de Fevereiro de 1941 e o último, o nº 149, em Outubro de 1955; O Brado Africano foi um semanário, propriedade do Grémio Africano de Lourenço Marques, fundado pelos irmãos João e José Albasini, em 1918, na sequência da venda de O Africano, por razões de carácter financeiro. O seu primeiro número foi publicado a 24 de Dezembro de 1918 e, em 1932 foi suspenso por sentença do Tribunal da Relação e retoma em 1933, sob a designação de Clamor Africano, indo até 1974, ano de publicação do seu último número.

Nogar poderá ser, eventualmente, uma daquelas relíquias poéticas nacionais esquecidas no fundo do nosso baú literário! Tanto somos levados a pensar assim, porquanto ele não é muito conhecido, na actualidade, não obstante ter sido muito marcante no seu tempo, não só como um lutador pela causa literária, mas também, pela abnegação em relação a todo um processo que levou Moçambique à sua libertação do jugo colonial português. Aliás, a literatura só veio subsidiar a sua dinâmica vida política. Ele soube pôr cada actividade em seu devido compartimento quando assim convinha que fosse, mas, também, sabia fazer as misturas necessárias, com dosagens bem equilibradas, quando o seu estro se guindava para o exercício literário e a sua audácia apontava para a defesa dos interesses nacionais e essas duas virtudes eram simultaneamente despertas e chamadas à luz do dia.

Poeta libertador da Pátria, porque um dos arautos da gesta libertadora, mesmo que na clandestinidade; poeta defensor da Pátria, porque um dos seus mais destacados guardiões, quando ameaçada, ainda acabada de nascer, pelas legiões da reacção; poeta promotor da ascensão da juventude ao Parnaso moçambicano, quando, por mérito próprio fora escolhido pelos seus companheiros para os representar como timoneiro da casa dos escritores do nosso país, corria o ano de 1982, ano da criação da Associação dos Escritores Moçambicanos, onde foi o primeiro Secretário Geral. Portanto, Rui Nogar foi um poeta na escrita e na acção. Foi poeta do protesto, da ruptura e da liberdade, porém, parafraseando o poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht:

“Há os que vivem nas trevas/ e os que vivem na luz./ É fácil ver os da luz,/ Mas ninguém vê os das trevas.”

Pois, Rui Nogar, até hoje está esquecido dos estudiosos que lhe deveriam prestar a devida homenagem, estudando e sistematizando a sua obra e, enfim, divulgando-a às novas gerações para que conheçam com profundidade, os contornos da vida e da obra de um dos obreiros da moçambicanidade através da literatura. É necessário que os mais novos saibam donde viemos, conhecendo os feitos dos nossos escritores do protesto anti-colonial, da ruptura e da liberdade.

Com um único livro publicado, em 1982, no género poético, <<Silêncio Escancarado>>, Rui Nogar faz, com este retumbante título, uma ode à Independência de Moçambique, tornando o acto operado pelo valoroso povo moçambicano que lutara até se libertar do jugo colonial português, o desselar de um silêncio secular. No poema  com o título: “Subsídios para a Heresia Total”, elaborado em três momentos temporalmente distantes, o primeiro (Do guerrilheiro Prometeu), o segundo (Da Última ceia), ambos escritos na Cadeia Central da Machava em 1966 e o terceiro (Confissão), escrito um ano depois da independência (em 1976), ele exprime neste último momento, o fim do silêncio, dizendo que sente dentro de si um espaço liberto dos conceitos existenciais antigos condicionados à moral presa aos preceitos religiosos através dos quais se manietavam as suas vontades reais. citação:

“descobri em mim/ subitamente/ um novo espaço disponível/ mesmo no sítio, onde estaria talvez/ (todos assim m’o diziam)/ uma alma me habitando/ nem eu sei porquê/ nem para quê…” fim de citação.

A nova realidade do país traz como que uma lufada de ar fresco, a memória da infância em que retrovê as freiras a catequizá-lo e a sua mãe rezando desmedidamente com velas acesas em castiçais nas noites de trovoada. Foi tudo uma liturgia da mentira, pois, segundo ele nota, isso lhe ocupava o espaço que hoje se acha disponível. Citação:

“apesar das freiras/ da minha infância/ latindo ainda ladainhas/ nas catacumbas da memória/ apesar/ dos castiçais da minha mãe/ orações febris velas acesas/ nas tensas noites de trovoada// apesar de tudo/ assim que descobri/ a liturgia da mentira/ a verdade é que fiquei/ com muito mais espaço/ muito mais/ para respirar/ e o amor pelos outros/ que cabia apenas no coração// ah agora sim/ sou todo todo/ pela revolução// pela reforma agrária/ das almas todas/ que ainda se possam reinventar”. Fim de citação.

No seu livro, Nogar traz-nos reminiscências do passado colonial, não com o fito de nos fazer revivê-las, nem tão pouco como o tição de algum sentimento de vingança, mas como uma forma de fazermos uma leitura que nos leve a ganhar forças para enfrentar um presente ainda calcetado de escombro, em busca de um futuro risonho para a sociedade moçambicana. É uma forma de esperança renascida à força do conhecimento das vicissitudes de ontem. Como se a Fénix ressurgindo das suas próprias cinzas. É uma forma de se enfrentar com verticalidade o presente, com um projecto seguro para o futuro.

Nogar fora preso em 1965, e enviado à cadeia civil, altura em que, na prisão, juntamente com José Craveirinha, Luís Bernardo Honwana e Malangatana Valente Ngwenya viu gente a ser morta através de injecções com ar que provocavam embolia. Nesse tempo o verso era o meio de comunicação privilegiado, porque subtil entre si, transportado nas sapatilhas, nas palmilhas e nas panelas vazias. Alguns serventes eram cúmplices, fazendo que do lixo se resgatassem mensagens que circulavam. Os poemas e os desenhos eram escondidos debaixo do colchão, razão porque ninguém sossegava, com medo da transferência.

O facto de a maioria dos poemas do seu livro <<Silêncio Escancarado>> transmitir a sua experiência nas masmorras da PIDE, não serve de apelo à exacerbação de sentimentos vingativos, antes pelo contrário, trata-se de um apelo de quem sofreu na carne as vicissitudes coloniais para que desse passado, como se crisálidas, nos transformemos em borboletas que volitam e vão de poiso em poiso sem sermos vulgares, procurando a liberdade nas praças da nação.

Veja-se a trajectória de uma borboleta no traço que é, em si, a marca dessa esperança, no poema “Nova Dimensão”, de 1965, do livro <<Silêncio Escancarado>>. Citação:

“esta borboleta/ que volitando vai/ de cama em cama/ grade a grade/ de não-penses-mais/ a um-dia-hás-de-sair/ não é uma borboleta vulgar// é sim uma borboleta/ borboleta ainda/ que um homem nesta prisão/ jurou libertar um dia/ do ciclo deste poema/ nas praças desta nação// é sim uma borboleta/ borboleta ainda/ que ele aprendeu a amar/ em cada nova tentativa/ de profundas metamorfoses// é sim uma borboleta/borboleta ainda/borboleta política/ casulada seis meses/ na cela número três/ da penitenciária industrial/ da colónia de Moçambique.”. Fim de citação

Rui Nogar transmite-nos através dos seus poemas anteriores à Independência de Moçambique, as suas emoções de sonhar uma pátria Moçambicana (“O sonho é necessário. O homem que não é o homem que atingiu uma aridez que o desumaniza”), a realidade presente no espaço e no tempo de uma pátria moçambicana ocupada e o devir de uma liberdade assente nas tarefas da construção que se haveriam de impor, pois a Nação estava sendo dilacerada pela guerra, pelos impasses económicos, a fome e outras insuficiências vitais que não lhe davam o luxo de parar na política para escrever ou organizar os seus arquivos poéticos. Nogar era um poeta desprovido de tempo para a literatura, muito ligado aos compromissos políticos, mas sempre sonhando.

Nogar foi militante da FRELIMO desde 1964, ano do início da Luta Armada de Libertação de Moçambique, sina que lhe valeu a erosão da luta pala independência, dos maus tratos na cela da prisão onde esteve encarcerado, da construção de uma Nação, dos impasses da realidade pós-independência. De várias formas houve tentativas de lhe destruírem o seu sonho de homem, de escritor, de cidadão moçambicano.

Declamador por excelência, desde os anos 60 até às vésperas da independência, era um representante da corrente subterrânea, aquela que <<através de um discurso de resistência em que se suprime o eu-poeta, passa  “o mundo sócio-cultural invisível de Moçambique colonial”>>, de acordo com Russell G. Hamilton. Ainda, segundo este estudioso, aquele “era o testemunho do clima difícil em que os produtores de uma literatura clandestina militavam.”. Assim, a poesia de Rui Nogar encontrava enquadramento no movimento de desintegração do discurso reivindicatório convencional.  o estilo poético de Nogar operava a reintegração da oralidade africana e da oratória neolatina.

Portanto, a poesia protestatária e panfletária de Nogar e de seus contemporâneos deixava vislumbrar aquilo que um dia poderia ser a raiz de uma literatura moçambicana. Era uma poesia inspirada na realidade social, a chamada poesia engajada, que se associava à realidade quotidiana de um povo, impregnada de magicidade. Aqui podemos ter como exemplo eloquente o poema XICUEMBO, onde estão evidentes os aspectos acabados de referir, tais, como: a reintegração da oralidade africana, a oratória neolatina, a realidade quotidiana de um povo e a magicidade.

Contudo, pesem embora, algumas opiniões críticas, Rui Nogar não pode nem por lapso ser ajuizado com a bitola do espartilho do que se tem rotulado poesia panfletária porque este poeta, no dizer de Cremilda de Araújo Medina, no livro “Sonha Mamana África”” (1987):

“compreende a nova geração que quer afirmar o poema de amor junto ao poema-arma. Sua sensibilidade poética extravasa os limites de um programa político. Este o cumpre na militância do dia-a-dia. Aquela espelha-se pelos delírios da noite. As raízes da loucura contida percorrem muitos caminhos.”

No tempo da juventude do poeta, Moçambique era historicamente lugar privilegiado de degredo, portanto, destino de exilados políticos, opositores ao regime político vigente em Portugal, o que valeu a Rui Nogar a sorte de ter uma professora que lhe ensinou as dimensões da injustiça e da revolta para lhe opor e ensinou-lhe os fundamentos do sentimento de respeito humano que tiveram depois a sua continuidade no liceu, nas disciplinas de história e filosofia, igualmente com professores exilados políticos portugueses.

A par dos estudos, Rui Nogar não só apreciava o futebol como o praticava nos caminhos da periferia da cidade de Lourenço Marques. A sua fibra poética teve influências bebidas de boas leituras acumuladas em biblioteca e, sobretudo, da dignidade ímpar do pai, um ferroviário que gozava de muitas simpatias por parte das pessoas com quem a família se relacionava. Também foram influências literárias de Nogar o Neo-realismo português; os grandes nomes da literatura Russa, destacando Máximo Gorki; os brasileiros Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e outros.

Depois da proclamação da independência em 1975 até os dias que correm, Rui Nogar foi, desde 1982 até 1987, Secretárioo-Geral da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), sendo o primeiro, de entre os escritores moçambicanos a assumir aquele cargo. Gostaríamos de deixar bem saliente que naquele período foi um grande impulsionador da literatura moçambicana, um verdadeiro lapidador de jovens talentosos que desde a fundação da AEMO calcorrearam o espaço físico da agremiação, realizaram, animados por Nogar, intensa actividade literária e muitos deles são o ponto referencial da literatura moçambicana, pós-independência, portanto, actual. Alguns, talvez os mais significativos, de entre os quais orgulhamo-nos de fazer parte, criaram a revista Charrua. Estes são, inegavelmente, frutos da visão sábia e vidente, futurista, como se quiser apelidar e pragmática de Rui Nogar, como Secretário-Geral da AEMO que, fazendo das tripas coração, enfrentou colegas seus, completamente cépticos quanto à valia que os jovens que ele protegia, pudessem trazer à Literatura Moçambicana. De uma biografia sua, publicada em 1987, há sensivelmente 19 anos, portanto, no mesmo livro Sonha Mamana África, de Cremilda de Araújo Medina, sob o título: Auto-retrato, extraímos a seguinte passagem: “Na época que ainda habita esta terra…, Nogar curte um carinho especial, uma compreensão paterna: diante da energia e da rebeldia das novas gerações moçambicanas, ele se emociona e as ampara.. o que acontece com o grupo Charrua e a revista que produzem os jovens escritores, às voltas com inúmeras dificuldades. Qualquer livro futuro de Rui Nogar estará na fila de espera para ser impresso e, certamente, autores de 20 a 30 anos passarão na frete.”

Outra eminente estudiosa da literatura moçambicana, a Professora Dra. Fátima Mendoça, dizia, em relação à época em referência, no seu livro “Literatura Moçambicana – a história e as escritas” (1988): “São várias vozes em vários tons. É um tempo rico, mas de espera, tempo de gestação e amadurecimento. Tempo que mostra que afinal em Moçambique… a Literatura está viva. Porque a nação também.”.

À propósito da sua tendência protectora de jovens escritores, de que tinha plena consciência, Rui Nogar afirmou numa entrevista que lhe fora feita por Patrick Chabal, em 1994, o seguinte: “Eu acho que uma das minhas características é ser mais provocador de vocações do que ser eu próprio vocacionado. E eu orgulho-me disso. Prefiro provocar os outros do que ser eu próprio.”.

Rui Nogar surge, como poeta, nos anos 50, como um lastro da poesia

que irrompe com o pós-guerra “Com as ressonâncias das primeiras explosões nacionalistas de que o V Congresso Panafricano é um claro indício que determina a emergência de uma nova geração de escritores moçambicanos”. Pois, são iniciáticos dessa nova era, Noémia de Sousa (Vera Micaia), Orlando Mendes e Fonseca Amaral, José Craveirinha e Marcelino dos Santos (Kalungano), cujo empenho se repercutirá, mais tarde, em Rui Nogar, Sérgio Vieira e Outros.

Nasce a 2 de Fevereiro de 1932 em Lourenço Marques e Morre, com 62 anos de idade, vítima de doença, em 1994, em Lisboa (Portugal).

 

Bibliografia:

 

CHABAL, Patrick. 1994. Vozes Moçambicanas – Literatura e Nacionalidade. AssírioBacelar. águeda

 

FERREIRA, Manuel. 1985. No Reino de Caliban III. Plátano Editora. Lisboa.

 

MEDINA, Cremilda de Araújo. 1987. Sonha Mamana África. Edições Epopeia. São Paulo

 

NOGAR, Rui. 1982. Silêncio Escancarado. Edições 70. Lisboa

 

PROLER. Maio de 2002. O Poeta, O Homem, A Obra – 80 Anos (Craveirinha). FBLP. Maputo

 

*in: (Arresto de Vozes – ou o cúmulo discursivo literário Vol. I) de Juvenal Bucuane

 

 

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