Como quase sempre na minha vida, tudo começa com uma história. Desta vez estava eu no cemitério (graças aos hábitos e costumes de quase maior parte das regiões moçambicanas, não se precisa de um convite para ir a um funeral), assisti com muita consternação ao enterro de um ente querido de um conhecido ao qual nutro muito carinho. O enterro ocorreu em um dos antigos cemitérios da província de Maputo. Pairava sobre o ar um ambiente de respeito, tristeza e as canções que eram entoadas iam fazendo jus à situação.
Como de costume nessas ocasiões, a cerimónia teve grande adesão. Fomos circundando o local do enterro, o que fez com que alguns de nós, ligeiramente atrasados, tivéssemos de ficar mais distantes. Isso obrigou alguns a disputarem espaço entre as campas vizinhas.
A norma por aqui é clara: não se pode pisar numa campa, pois isso constitui um grave desrespeito aos defuntos e às suas famílias. Quem o fizer incorre no risco de sofrer várias consequências, entre elas, ser assombrado pelo defunto da campa pisada.
Eu como não gosto de testar coisas cujas consequências não estaria disposto a enfrentar, evito. Fui me ajeitando entre os “corredores” das campas. Mas era difícil e desconfortável estar ali porque havia uma grande vegetação à volta e no meio das campas, muitas delas estavam mal cuidadas, em outras havia garrafas plásticas, baldes e outros objectos similares pousados ali pelos vendedores informais de água que a eles essa norma de não pisar em campas não os abrange.
Mas esse é o pão de cada dia de quem vai aos cemitérios em Maputo e, pelo que pude testemunhar pessoalmente assim como pelo que os jornais e as redes sociais reportam, é a situação que é vivida um pouco por todo o país. Cemitérios descuidados, com dificuldades de circulação interna e, inclusive, vandalizados com fins comerciais. As cruzes, os mármores, os vasos de flores, entre outros objectos que adornam as campas, parecem ter um valor comercial (não quero aqui entrar em discussões valorativas e questionar quem teria a coragem de comprar tais objectos, porque uma vez fui à casa de um conhecido meu e percebi que uma das pedras do mármore da cozinha levou muito tempo a ser fabricada. É que havia lá uma inscrição que, apesar de ter sido bem raspada, os meus curiosos olhos conseguiram decodificá-la e perceber que a produção daquele mármore iniciara a 28-03-68 e concluíra-se a 13-06-2015. Só não consegui ler o nome do artista que produziu o mármore, mas qualquer coisa do género “Eterna saudade”).
Eu pretendia me calar e guardar estes pensamentos apenas para mim, mas o que sucedeu quando nos retirávamos do cemitério foi de quebrar o coração. Uma senhora, elegante e bem pausada, logo depois da oração final, afastou-se da aglomeração quando ouviu o seu nome ser chamado numa direcção contrária à que ela seguia. Isso a fez virar o rosto para trás, pronta a atender ao chamado. Nisso, não sei ao certo por qual razão, física ou geográfica, ela se desequilibrou e colocou o pé no meio de uma campa que estava à sua esquerda. Para o nosso espanto, o seu pé afundou ligeiramente, e ela precisou do nosso apoio para se remeter em pé.
Aparentemente, a campa em questão, além de ter sido vandalizada, havia sido desfeita pela água das chuvas.
O descuidado com os cemitérios e as campas nos últimos tempos tem me gerado alguma preocupação, pois esses locais possuem um valor fundamental no processo da reconstituição das histórias e das identidades sociais colectivas. No caso das sociedades moçambicanas, sobretudo as rurais, que, pelo que se sabe até agora, não possuem registos escritos significativos sobre a história das suas famílias e dos seus ancestrais, o descuidado, e o consequente desaparecimento destes locais de memória, aceleram cada vez mais o processo de desconhecimento e desconexão com as identidades sociais desta terra.
Ou seja, as campas e os breves registos deixados nela, ajudam, por exemplo, a reconstruir a árvore genealógica de uma família e a determinar o tempo exacto de vida de um ente querido e, com isso, estabelecer conexões sociais com outros ancestrais que tenha partilhado o mesmo tempo vida. Tal conhecimento tem um valor fundamental para um indivíduo e para uma sociedade.
Ainda me é presente na memória o dia em que encontrei, algures em Paris, uma conhecida que ficou maravilhada ao saber que eu conhecia a localização exata da terra onde o meu bisavô havia sido enterrado. O máximo que ela sabia de si mesmo era que o pai tinha emigrado de forma forçada de algum país de África para o Haiti e, posteriormente, tinha ela própria, após a morte do pai, emigrado para a França. Causava-lhe confusão à cabeça não saber de qual país africano o seu pai era originário, e sentia que estava condenada a viver com esse vácuo na sua história pessoal.
Conhecer as histórias e identidades dos ancestrais não é mero capricho, é uma necessidade social pois são essas histórias que vão contribuir para a construção da memória colectiva e das identidades de uma sociedade. Conseguimos retraçar a história dos egípcios, Gregos, Sumérios, Tsongas, Zulos, Maraves… etc. através dos símbolos esculpidos ao longo da história, permitindo assim que parte significativa de sua trajectoria fosse conhecida.
E, por outro lado, uma família ou uma sociedade que é consciente da sua história, está mais apta para tomar melhores decisões para o seu futuro e, neste quesito, dou crédito ao filósofo espanhol George Santayana que, num dos seus escritos, afirmou que “Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”.
Compreendo que há muitas razões que impedem que o cuidado dos cemitérios e das campas seja feito com o zelo e a frequência necessária. Desde as questões logísticas-orçamentais (familiares próximos/directos a residirem em regiões distantes o mesmo estrangeiras) crenças e valores (há quem diga que a igreja não permite que se visite as campas ou que visitar as campas é incorrer o risco de receber a maldição que terá colocado fim a vida do seu ente querido, entre outros…), contudo, independentemente das crenças de cada um, não cuidar destes locais é, de alguma forma, contribuir para o desaparecimento de partes da história da nossa sociedade.
Junho 2025