Nasci no regaço do pequeno monte Nauela, na correnteza mitológica provinda da cordilheira dos montes Namúli, no noroeste da alta Zambézia. Nesta geografia de altos e baixos relevos também nascem os rios Molócuè e Licungo que, tendo banhado a minha adolescência, serpenteiam em direção ao oceano Índico – esse portal das minhas chegadas e partidas. Estas são as latitudes e longitudes da minha nascença, onde o azul do céu encima o cume das serras; onde o cinzento das nuvens envolve o silêncio das montanhas; onde o verde extenso da vida cobre por completo o corpus das colinas.
Em pequeno fui sempre uma criança virada para dentro de si própria; lembro-me que passava horas a fio enclausurado no meu pequeno mundo interior, procurando estabelecer a relação entre mim e tudo quanto me circundava. Por causa das minhas fugas para o interior de mim, minha mãe dizia sempre que eu era um menino distraído, e que passava a vida aterrissando na lua. Os meus sentidos tinham simplesmente a missão de captar o mundo exterior e reencaminhá-lo para dentro de mim. A fusão destes dois mundos configurava a totalidade do meu universo.
Lembro-me de todas as fases da lua. Das noites de lua cheia que eram uma festa. Daquela luz prateada e derramada sobre o milharal – do jogo às escondidas nas noites das traquinices -, que era um dos meus maiores deslumbramentos. E dos pirilampos em noites de breu! E da via-láctea que do zénite impunha e alargava a sua amplitude! E das estrelas do meu signo e da minha anunciação! E das cigarras, dos pássaros, das libelinhas do riacho, mas tudo isto embalado pelas estações trazidas pelos astros.
A minha relação com os primeiros pingos de chuva, com o odor a terra molhada, com os campos cobertos de neblina, ou com as velhas acrobacias das andorinhas, data desde as calendas da minha meninice, e era mais do que uma simples comunhão do meu ser com a natureza que então compunha a plenitude das coisas ao meu redor. De tudo, o vento foi algo que também sempre me fascinou sobremaneira; eu queria ser como a liberdade das suas asas, voando sobre as árvores, ou baloiçando nos seus ramos, ou simplesmente acariciando as suas folhas, querença essa que perdura até aos dias de hoje. Sim, quero ser como o vento, como o mar de todas odisseias, e das alegrias emergidas e dos afogos naufragados. Quero ser a eternidade de todos instantes vividos junto à mãe natureza que generosamente me é consentida.
Depois veio a mudança de lugares. Aliás, a minha infância e a minha mocidade foram vividas alternadamente entre Alto Molócuè e a então Vila Cabral, hoje Lichinga. São espaços da minha vida, dos meus sonhos, da minha poesia, dos meus amores, em síntese, de todos os pretéritos do meu ser. As mais sólidas lembranças da minha meninez datam desde os meus seis anos. Em termos geográficos as duas regiões têm semelhanças e dessemelhanças. São versões da mesma paisagem, isto é, são relevos que se completam mutuamente. Aqui a paisagem era plana e elevada, portanto, uma miscelânea entre montes e planícies. O meu olhar continuava atento às mensagens que a natureza me transmitia. Recordo-me ainda do sibilar místico dos pinheiros nas noites de frio. Realmente, a tríade noite, frio e vento, tinha a sua própria linguagem que só os pinheiros podiam traduzir. E eu esforçava-me por entender aquelas mensagens trazidas do espaço e do fundo da terra. Entretanto, o meu imaginário sobre a vida e o mundo alargava-se com o passar dos meus anos.
Nestas paragens de nascença e crescimento, com a mesma atenção apurada aprendi igualmente a conhecer e a amar as pessoas, desde os membros da minha família biológica aos da minha família de convivência e comunhão – daquilo que a vida estende nos carreiros colectivos. Ambas famílias configuram a minha génese. E estas constituíam o outro cosmos – o meu espaço social -, em contraposição à natureza que me contemplava com os meus próprios olhos. Porque, de facto, era preciso um equilíbrio cósmico para que a poesia que em mim borbulhava não desarvorasse de incompleição.
Vêm estas memórias de infância a propósito da poesia haikai ou haiku. É um género de poesia “inventado” no Japão no século XVI, e que hoje é praticado quase em todo o mundo, embora não obedecendo rigorosamente às regras tradicionais. O haikai é caracterizado pelo poema simples, breve, conciso, depurado, belo e muito objectivo. Inicialmente usava exclusivamente a natureza como motivo de inspiração. Ou seja, o haikai é a arte poética que estabelece a relação entre o homem e a natureza. Ademais, o objectivo principal do haikai é justamente o de despertar ou aguçar no leitor o espírito contemplativo e descritivo (e também de reflexão, digo eu) expressos no poema. Exige, acima de tudo, uma atenção apurada para a captação instantânea e aos mínimos fenómenos da natureza. Mas nos tempos modernos os motivos estendem-se aos temas vários, desde amorosos aos sociais e/ou existenciais, embora a objectividade seja sempre a sua principal característica. Por conseguinte, as memórias de infância atrás descritas constituem, para mim, o espírito nuclear e, ao mesmo tempo, fonte e repositório da poesia de índole haikaista. Eu pessoalmente sou igualmente cultor e prosélito do poema haikai desde os primórdios das minhas composições poéticas.
MATSUO BASHÔ (1644–1694), nascido em Tokyo, não só é considerado o precursor como também o maior poeta japonês do estilo haikai. Foi ele inclusivamente quem codificou e estabeleceu os cânones do tradicional haikai japonês. Bashô tem obras traduzidas também para a língua portuguesa, como é o caso da antologia “O Eremita Viajante”, Assírio & Alvim, lançado em 2016. Vejamos alguns dos seus haikais:
SEM ESTAÇÃO
Que lua, que flor
nada, bebo umas doses
aqui sozinho.
***
E tu, aranha
como cantarias
neste vento de outono?
***
Nesta noite
ninguém pode deitar-se:
lua cheia.
***
Silêncio:
cigarras escutam
o canto das rochas.
Alguns dos precursores do haikai em língua portuguesa são os brasileiros Guilherme de Almeida (1890-1969), Fanny Luíza Dupré (1911-1996), Paulo Leminski (1944-1989). Deixo aqui alguns dos seus haikais:
GUILHERME DE ALMEIDA
(Infância)
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se “Agora”.
(Cigarra)
Diamante. Vidraça.
Arisca, áspera asa risca
o ar. E brilha. E passa.
FANNY DUPRÉ
Saudosa de ti
caminho só pela rua.
É noite de estio.
***
Bolha de sabão.
Borboleta distraída…
Colisão no ar!
(Inverno)
Rua esburacada
Brincando nas poças d’água.
O menino tosse.
PAULO LEMINSKI
(Não discuto)
não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino.
(Um dia vai ser)
Pelos caminhos que ando
um dia vai ser
só não sei quando.
(Esta vida é uma viagem)
Esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem.
Eis aqui, um dos meus primeiros poemas haikais:
(À memória de Anabela Mafalda)
Em todos os ramos
por onde pousaste
reclinei-me de frio.
(In “Espelho do Dias, 1986)