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Recensão: “XIBALO – Quando Moçambique era Província”

Entre a Literatura, a Memória e a História

Notas Críticas para um Diálogo Necessário

Foi apresentado no dia 29 de Agosto último em Maputo o  livro “XIBALO – Quando Moçambique era Província”, cujo autor, Nelson Moda, firma-se, nesta nova publicação, na arte literária da história social. Também seu, o livro “Xirico. Vozes de Paz em Moçambique”, como o “Xibalo”, nos aviva a memória coletiva pelos símbolos icónicos da história do nosso século passado. 

A memória contida nos dois livros acaba por transfigurar pela metáfora subjacente nos subtítulos a representação de experiências difíceis que passamos. As experiências da colonização e da revolução. Por sinal, ambas alçadas no culto da massificação social  de propósitos maiores em si mesmos, paradoxalmente libertários. 

A memória é mesmo isso, tal como diz Paul Ricoeur, um dos nomes maiores da ciência histórica, para quem a “memória não é o que se recorda, mas aquilo que recorda”.

Esta era uma breve introdução ao presente exercício de leitura e crítica do livro “Xibalo” do professor e mediador de paz, Nelson Moda,  que nos convoca a mergulhar num texto literário que desafia convenções, articula períodos históricos distintos e propõe-se como contributo para a reconstrução da nossa memória colectiva. 

Contudo, esse impulso literário e memorialístico merece uma reflexão crítica, sobretudo quando a literatura se aproxima, com ambição, do campo da história.

Nelson Moda é um nome conhecido na vida académica e na diplomacia informal. Nascido em 1984, envolvido em missões de paz em Moçambique e no Sudão, ligado à Comunidade de Santo Egídio e à Universidade Católica, como docente, ele carrega consigo uma biografia de escuta e mediação. 

Esse ímpeto para o diálogo está presente neste “Xibalo”, um livro em que o autor impele-se a mediar os tempos, o passado colonial de Moçambique como província ultramarina de Portugal e o presente, em que ele mesmo é sujeito reflexivo. Há aqui, sem dúvida, um gesto generoso de resgate e denúncia.

Mas ao tentar cobrir um horizonte temporal tão amplo, do período colonial à contemporaneidade, o autor acaba por correr o risco de sobrevoar os factos com leveza excessiva. A narrativa, ainda que rica em imagens e preocupada com a condição do povo moçambicano, falha ao não dialogar com a historiografia crítica e especializada sobre o colonialismo, a luta pela libertação e a memória. 

A produção de conhecimento exige ancoragem. E no presente caso, a ausência de referências a autores credenciados e incontornáveis da historiografia moçambicana como Carlos Serra, Teresa Cruz e Silva, Yussuf Adam, Gerhard Liesegang, Malyn Newitt, Allen Isaacman, entre outros, deixa um vazio difícil de ignorar. 

A história não é uma narrativa, apesar do inverso ser um facto apetecível. E nesta coisa de escrever a história nos parece assente que os factos e a narrativa, com muita frequência, se contradizem. Amiúde, o discurso toma de forma deliberada o lugar do que acontece, mostrando os lados que nos agradam e não aqueles que, de facto, mereceríamos conhecer.

Este seria o caso da história passada do meio milénio do império português e da Igreja Católica em Moçambique e de outros lugares do mundo. As narrativas tendentes a descurarem as realidades históricas, muitas vezes incomuns e impopulares, como a relação dialética entre secularização e evangelização, parecem levar a que o autor, Nelson Moda, afirme que:

“Os portugueses coloniais manipularam a Igreja Católica, usando-a como instrumento de persuasão aos indígenas, facilitando, desta forma, a sua expansão e autoridade interna” (p. 14).

Como, então, se compreenderia que o império português tenha desvanecido e a Igreja se mantenha perene, se esta última, como se pode ler, tenha sido um “instrumento” português na história?     

A negação absoluta em história, pelos maniqueísmos próprios das dualidades discursivas, não é o mais aconselhável. A escrita da história é um processo de tessitura sábia, de ajuste das tonalidades, de aquietação das animosidades e tensões e, acima de tudo, passível de criar a reconciliação e permitir que os homens finalmente vivam em paz entre si. 

Tal escrita virtuosa facilmente torna-se uma ressonância negacionista quando a história em causa, como a que versa este livro “Xibalo”, é profundamente marcada pela violência racial do tráfico, da escravização, da extorsão, da despersonalização mediada pelo xibalo colonial e outras desumanidades.

Assim, em nossa vocação literária e, sobretudo, historiográfica devemos nos apelar à serenidade, permitindo-nos questionar, por exemplo, as habilidades diplomáticas de Portugal e não achar que o império português foi um facto à calha, a despeito das suas limitações financeiras e económicas. Tal serenidade, certamente, não levaria a se escrever da seguinte forma: 

“Se analisarmos à luz de uma leitura histórica rigorosa, o império colonial português perdurou, em grande parte, devido ao desinteresse da comunidade internacional…” (p.23).

Importa que a história, em verdade, nos informe sobre as realidades, até porque só assim nos precavemos dos ardis dos tempos, ao longo dos quais os poderes podem dissimular seus intentos. 

Adicionalmente, parece pouco convincente narrar o colonialismo como uma estrutura homogénea e autocentrada. É crucial reconhecer que Portugal foi, historicamente, uma potência periférica, pobre em recursos e altamente dependente de alianças estratégicas com países mais poderosos, nomeadamente a Inglaterra, com suas companhias majestáticas, e, mais tarde, a NATO, cujos apoios logísticos sustentaram o esforço colonial até ao limite da sua exaustão. 

Este tipo de contextualização é vital para não se cair na armadilha de repetir, inconscientemente, os mesmos enquadramentos binários entre “bons colonizadores” e “maus colonizados”, ou vice-versa.

No campo da metodologia, impõe-se uma distinção fundamental. Literatura não é história. A literatura pode e deve romper silêncios, dar voz ao indizível, convocar os sentidos. Mas, ao pretender interpretar processos históricos, o autor deve declarar os limites da ficção e reconhecer as tensões entre memória individual, mito social e rigor histórico. A ausência de uma bibliografia ou notas explicativas deixa o leitor num limbo. Estamos  a ler um testemunho, romance, crónica ou ensaio?

De maneira nenhuma essas precauções metódicas diminuem o mérito do “Xibalo”. Há páginas densas, emocionantes, comprometidas. Há um registo de oralidade bem conseguido. Há dor e esperança nas entrelinhas. Mas a leitura crítica exige que se diga, não basta a intenção para que o gesto se cumpra. 

Este livro pertence a uma geração literária moçambicana nova, de livros históricos iconográficos, temáticos como o “Xibalo” ou “Xirico”, este último também do mesmo autor, ou livros biográficos publicados sem que necessáriamente seus autores sejam historiadores.

E talvez seja precisamente isso que torna esta obra instigante, o seu inacabamento, a sua sede de ser mais do que é, uma legítima busca jovem em alicerçar a identidade coletiva moçambicana. 

Esta leitura crítica é também uma sugestão e uma homenagem à apreciação de um florescer literário, num país em que a escrita tem sido o arauto. “Xibalo” convida-nos, se o quisermos aceitar, a construir uma ponte entre o testemunho literário e a análise histórica. Essa ponte exige rigor, intertextualidade e serenidade crítica. 

Nelson Moda trouxe à mesa uma provocação. Cabe-nos agora continuar o debate, com generosidade, mas também com exigência intelectual. 

Deixo, ao fim, ficar o provérbio de mérito ao nosso autor do dia:

“Cada pássaro voa com suas próprias asas”.(X)

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