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“Quero que o meu leitor conheça um Brasil sem cocaína e mulher pelada”

O Brasil é alvo de conotações: favelas, drogas e mulheres mal vestidas. Mas Brasil não é isso de todo. Por isso, a escrita de Luiz Ruffato é um convite para o leitor conhecer um outro país, feito de outras realidades. Nesta entrevista, o escritor brasileiro, que participou no Colóquio de Literatura Resiliência, refere-se às trilhas do seu processo de escrita, com um olhar atento ao leitor moçambicano.

Por que participar no colóquio de literatura?

Para mim, é fundamental estabelecer diálogos entre o Brasil e outros países que falam português. Então, colóquios como estes permitem começarmos a conhecermo-nos melhor. Penso que o Brasil não conhece os países africanos e Moçambique não conhece Brasil o suficiente. A porta aberta pela Cavalo do Mar, com publicações de autores brasileiros, e os colóquios em si, contribuem para que possamos iniciar o estabelecimento de um diálogo. 

Muito antes desta viagem a Maputo, teve o primeiro contacto com Moçambique por via da literatura. O que lhe permite esta visita?

Compreender melhor o que já imaginava, que Moçambique é muito parecido com o Brasil ou o contrário, sobretudo no que diz respeito à alegria. De facto, comecei a ter contacto com as literaturas africanas e a moçambicana em particular na década de 80. Na altura, havia uma editora chamada Ática, que publicava uma colecção chamada Autores Africanos. Nela, publicou-se duas obras de autores moçambicanos: Portagem, de Orlando Mendes, e Nós matamos o cão-tinhoso, de Luís Bernardo Honwana. E, por meio desses autores, comecei a ler Noémia de Sousa. Esse foi o meu primeiro contacto com Moçambique. E hoje penso que dos PALOP Moçambique deve ser dos países que tem uma literatura mais interessante e rica.

A maior riqueza da literatura moçambicana, na sua opinião, está na poesia ou na narrativa?

É evidente que há maior publicação de poesia, porque a sua finalização é mais rápida, embora seja mais complexa. Um romance pode demorar uns dois ou três anos para escrever, enquanto um livro de poemas, mesmo podendo levar o mesmo tempo, é mais provável que fique pronto num período mais curto. O que aparece mais, hoje, é a poesia, mas estou percebendo que, nos últimos tempos, é feita uma prosa muito interessante. Penso que nos próximos dois anos, a este nível, a prosa moçambicana vai estar num bom patamar na lusofonia – um termo bastante discutível, mas vamos usar provisoriamente.

Se calhar, podemos trocar esse termo, “lusofonia”, por “universo de língua portuguesa”…

Isso também é um problema. Para nós, os brasileiros, é um enorme problema. Todo o termo carrega em si uma ideologia. E a ideologia que carrega “lusofonia”, “língua portuguesa” é muito forte. Eu não me enquadro nesses conceitos.

Estreia-se em livro com Eles eram muitos cavalos, no país. Por quê este?

Embora tenha sido publicado há 17 anos, é o meu livro mais traduzido (em oito línguas), publicado em 10 países, incluindo Moçambique. Achei interessante começar a apresentar-me por aqui, pois é uma síntese do que fui fazendo depois. Os meus livros posteriores, de alguma maneira, têm relação com Eles eram muitos cavalos, que acaba sendo um cartão-de-visita à minha obra.

O que mais lhe interessa que o leitor moçambicano encontre neste livro?

Interessa-me que os leitores conheçam um Brasil que não é exótico, que não é aquele das favelas, da cocaína ou das mulheres peladas. Esta é uma história que acontece em São Paulo, sobre uma classe média pobre. Segundo, interessa-me que encontrem a questão formal. Aqui trago 69 pequenos trechos, que compõem uma espécie de mosaico. Cada trecho é escrito de maneira narrativa diferente. Inclusive, este livro é muito usado em cursos de criação recreativa porque traz vários aspectos da possibilidade de narrar, juntando conteúdo forte e a vertente formal.

Ao escrevê-lo, quis fugir dum certo estereótipo relacionado com a sociedade brasileira?

O livro presta-se a isso, mas nunca quis escrever contra nada. Escrevo porque escrevo, mas claro que o livro quebra esses estereótipos. E o livro acabou sendo adaptado para o teatro quatro vezes e permitiu-me ganhar um prémio importante na Alemanha. Eles eram muitos cavalos abriu-me portas. Este é o livro que puxa meus outros livros.

É um autor que procura obter respostas na comunicação que estabelece com os seus leitores?

Escrever é um acto solitário. Quando você tem oportunidade de, por conta dos livros, ter acesso aos leitores e ouvir o que eles pensam do seu trabalho, é bom. No Brasil são mais ou menos 65 trabalhos de mestrado e doutoramento sobre os meus livros. Talvez, 40 sejam sobre Eles eram muitos cavalos. Interessa-me saber como o livro é recebido em diferentes espaços. Isso é muito bom para mim, mas não influencia na forma como produzo a minha literatura. Para mim, escrever é uma necessidade. As escolhas que faço são riscos meus. Por exemplo, depois do livro ser um sucesso, não disse para mim que faria daí em diante algo semelhante. Pelo contrário, nunca mais fiz algo parecido ao Eles eram muitos cavalos. Absolutamente nada. Gosto de pensar que escrever é sentar numa poltrona que me causa incómodo. 

Esses incómodos são feitos de revolta?      

Sou escritor profissional. Vivo há 15 anos só de literatura, não poderia ser uma coisa que me desse desgosto. Tem que ser uma coisa que me dá prazer, mesmo porque a literatura não deve ser ideológica. Eu, como cidadão, posso ser ideológico. Mas, como escritor, não. A literatura está além disso.

Tem que ser algo descomprometido?

Não. A literatura tem que ser completamente comprometida, comprometida com a própria literatura, e não com o tempo em que é escrita ou com a ideologia. Para mim, a literatura é uma mistura entre conjunto de ideias e de palavras, uma convergência de formas e conteúdos. O meu compromisso é ético e é estético com a literatura, porque ético e estético é mesma coisa.

Qual é o seu grande desafio ao escrever?   

Penso que está em ser essencialmente brasileiro, e não ser; em ser essencialmente dos meus contemporâneos, e não ser. É nessa trilha que tenho caminhado.

E ao caminhar nessa trilha, há um tempo particular que mais lhe interessa?

Sim, é o meu tempo. A minha literatura é extremamente comprometida com o meu tempo e com o tipo de visão de mundo que tenho, porque escrevo sobre a classe média baixa. Não miserável, que não conheço. Conheço, sim, a vida de gente pobre, porque sou filho de mãe analfabeta e de pai semi-analfabeto. A minha trajectória é de famílias pobres. Então, sei o que é ser pobre no Brasil e sei como o Brasil é um país injusto, racista, machista e homofóbico. Vivi essas realidades todas e é com isso que sei tralhar. Agora, não conheço favelas. Logo, sobre essa realidade não posso falar. E isto é curioso porque a arte brasileira em geral aceita falar de miseráveis, mas não de pobres. 

O que se pode esperar da sua literatura?

Despertar no leitor uma consciência de quem ele é no mundo.

O leitor pobre?  

Não, em geral. No Brasil, nem o rico lê, agora imagine o pobre. O acesso à literatura no Brasil não existe. O Brasil é um país analfabeto. Há estatísticas que mostram que, em cada três brasileiros, um não entende o que lê. E esses dois que compreendem não lêem. Portanto, não penso na literatura como algo revolucionário. Na escrita interessa-me entrar de uma maneira e sair de outra. Pior ou melhor não importa, desde que seja diferente.

Que receita para se fazer do acesso ao livro uma realidade?

Educação. E não me refiro àquela de ter milhões de alunos na escola. Isso não importa. A que importa é a que permite ter crianças na escola num ensino de qualidade, para a cidadania. Coisa que não existe no Brasil. Nós temos piores sistemas de educação, de péssima qualidade. Enquanto não resolvermos o problema da qualidade de ensino, não teremos sucesso… No Brasil, nós estamos à beira de uma eleição, para Presidência da República, e, provavelmente, vai ganhar um sujeito nefasto, de extrema-direita. Se ele ganhar, vamos ter mais uma geração inteira perdida, porque, certamente, não será na educação que ele vai investir, não é do seu interesse.

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro a obra de Ungulani Ba Ka Khosa e a do poeta brasileiro Iacyr Anderson Freitas.

Perfil

Luiz Ruffato é escritor brasileiro. Nasceu a 4 de Fevereiro de 1961. Entre várias distinções, foi premiado com Troféu APCA, Prêmio Machado de Assis, Jabuti e Prémio Internacional Hermann Hesse. Ruffato vive apenas de literatura há 15 anos, e, em Moçambique, estreia-se em livro com Eles eram muitos cavalos.

 

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