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Quem detém autoridade na luta contra a insurgência em Cabo Delgado?

Espaço de análise: Alberto da Cruz e  Egídio Chaimite

 

INTRODUÇÃO

A circulação recente de um vídeo amador, no qual a população de Mocímboa da Praia “manifesta” uma clara preferência pela presença das tropas ruandesas, relança de forma dramática o debate sobre a autoridade do Estado em Cabo Delgado.

A segurança, em qualquer Estado moderno, constitui uma função central e inalienável. É ela que sustenta o pacto social: os cidadãos aceitam renunciar a certos direitos individuais em troca da proteção contra ameaças externas e internas. Contudo, no norte de Moçambique, esse princípio encontra-se hoje profundamente questionado. O vídeo em causa expõe a perceção crescente de que a autoridade formal do Estado se encontra diluída, cedendo espaço a atores externos, em particular às forças militares do Ruanda.

A interrogação que ecoa nas ruas de Mocímboa da Praia – “quem tem autoridade?” – transcende o episódio local. Trata-se de um questionamento que atinge o âmago da soberania nacional e obriga a refletir sobre o lugar do Estado moçambicano na sua função mais elementar: garantir a segurança dos seus cidadãos (soberania em Moçambique).

 

CONTEXTO

O conflito em Cabo Delgado, iniciado em 2017, já não é novidade. Os grupos insurgentes, muitas vezes classificados como de inspiração jihadista, rapidamente expuseram a fragilidade das Forças de Defesa e Segurança de Moçambique (FDS), incapazes de conter os ataques que devastaram vilas, destruíram infraestruturas e deslocaram centenas de milhares de pessoas.

Essa fragilidade não é apenas operacional. Estudos lembram que o Estado moçambicano sempre se caracterizou por um paradoxo: um partido dominante (Frelimo) relativamente forte, sustentado por um Estado fraco, incapaz de garantir serviços básicos e de se impor como autoridade legítima no terreno. O resultado é uma crise de confiança. Para muitas comunidades, as forças estatais não são sinónimo de proteção, mas sim de abusos: extorsões, confisco de bens e tratamento arbitrário. Essa erosão da legitimidade abriu espaço para que outros actores preenchessem o vazio.

O notório grupo Trovoada: Este padrão de comportamento das FADS não é exclusivo de Cabo Delgado. Ao longo da história recente que versa sobre a Guerra cívil, multiplicaram-se episódios semelhantes em outros pontos do país, em particular durante a guerra no centro de Moçambique. Investigações independents (IESE: Chaimite & Salema, 2024) documentaram práticas recorrentes de pilhagem, extorsão e vandalização por parte de destacamentos militares, incluindo o notório grupo Trovoada. Essas acções, justificadas internamente como estratégias de sobrevivência – ou seja, uma forma de “desenrascar”-,  normalizaram a violência contra civis e criaram um ambiente em que a própria população passou a associar os militares não à protecção, mas ao medo e à perda de bens.

 

ENTRE COOPERAÇÃO E DEPENDÊNCIA

Perante o risco de colapso total da província, depois da tomada e controlo total do distrito de Mocímboa da Praia, o governo recorreu a forças externas. Primeiro o Grupo Wagner, de forma obscura e de curta duração. Depois, em 2021, sem acordos claros entre governos, chegaram os militares ruandeses, rapidamente seguidos pela Missão da SADC (SAMIM).

Os ruandeses destacaram-se não só pela disciplina e eficácia no combate, mas também pela proximidade com as comunidades locais. Falam suaíli, estabeleceram canais directos de comunicação com líderes comunitários e, segundo relatos, até implementaram pequenas iniciativas sociais, como escolas. Em contraste, as tropas moçambicanas continuam a ser vistas como predatórias, incapazes de estabelecer uma relação de confiança. Como vimos, no estudo acima referido, estes comportamentos são recorrentes em outros contextos. Assim, as forças armadas, em vez de se afirmarem como instituição de confiança nacional, acabam por reforçar a ideia de um Estado distante, que se impõe pela intimidação em vez de pela protecção. Ao reproduzir este padrão em diferentes contextos, o exército consolida a sua imagem de predador social e não de guardião público, corroendo a legitimidade do Estado e criando espaço para que actores alternativos – de líderes comunitários a tropas estrangeiras – se apresentem como autoridades mais fiáveis aos olhos da população.

 

POPULAÇÃO NEGA AS FADM?

Um vídeo que recentemente circulou nas redes sociais mostra supostamente moradores de Mocímboa da Praia a exigir a retirada das tropas moçambicanas e a permanência dos ruandeses. A cena é emblemática: cidadãos a pedirem a substituição do seu próprio exército por forças estrangeiras, por entenderem que só estas asseguram a ordem e respeitam a comunidade.

A resposta oficial do governo foi sintomática. O Ministério da Defesa manteve silêncio – como em tantas ocasiões sobre Cabo Delgado – e apenas o porta-voz do Conselho de Ministros se pronunciou, reafirmando que “é função das FDS guarnecer a população”. Contudo, a insistência retórica contrasta com a realidade prática: no terreno, quem garante segurança, quem é chamado para socorro, quem atende às comunidades, são os ruandeses.

 

A SUBSTITUIÇÃO SIMBÓLICA DO ESTADO E O RISCO EMINENTE

Se seguirmos a conceptualização de autoridade discutida por vários estudiosos (Chaimite et al, 2021) – entendida como qualquer actor capaz de resolver problemas concretos da comunidade e garantir serviços básicos – torna-se evidente que, em Cabo Delgado, a autoridade de facto já não reside no Estado moçambicano, pelo menos no caso de Mocimboa e, quiçá, Cabo Delgado.

Os ruandeses têm números de contacto que circulam livremente pelas aldeias, estão acessíveis em casos de emergência e são chamados directamente quando há assaltos, conflitos ou ataques insurgentes. Esse detalhe aparentemente banal é, na realidade, profundamente revelador: o recurso espontâneo das populações a forças estrangeiras demonstra que a confiança social já não se deposita nas instituições nacionais. Mais ainda, evidencia a internalização de uma nova hierarquia de autoridade, na qual o Estado moçambicano deixou de ser o primeiro interlocutor.

A confiança que os ruandeses gozam junto dos líderes comunitários reforça essa deslocação simbólica. Enquanto as forças nacionais são frequentemente associadas a práticas de extorsão, violência arbitrária ou desorganização, os militares ruandeses projectam-se como provedores de segurança, com disciplina, prontidão e uma postura de proximidade. O resultado é uma legitimidade que não nasce de leis ou normas constitucionais, mas da percepção popular de que cumprem a função essencial de proteger vidas e bens.

Trata-se de uma legitimidade empírica e performativa: ela constrói-se dia após dia, em cada intervenção bem-sucedida, em cada gesto de respeito pela população. E é justamente essa repetição de práticas eficazes que alimenta um ciclo de confiança cumulativo, contrastando com o ciclo de desconfiança que marca a relação entre as comunidades e as FADM.

Neste quadro, o exército moçambicano, embora formalmente soberano e reconhecido pela ordem jurídica nacional, é relegado a um papel secundário, quase decorativo, quando não mesmo hostil. Nas narrativas locais, os soldados nacionais não simbolizam a paz, mas o seu contrário: a ameaça de violência, a apropriação de bens, a ausência de proteção. A inversão é dramática: a instituição que deveria encarnar a soberania tornou-se, aos olhos dos cidadãos, uma fonte de insegurança.

Comparações internacionais ajudam a compreender a especificidade deste quadro. Em países como a Somália, a presença da AMISOM (Missão da União Africana) foi vista como indispensável para evitar o colapso completo de Mogadíscio. No entanto, apesar da sua relevância operacional, a AMISOM nunca foi percebida como autoridade de facto: era uma força de interposição, não o actor a quem os cidadãos recorriam para problemas quotidianos. Na República Centro-Africana, as forças da MINUSCA e os militares franceses asseguraram proteção pontual, mas sempre em regime de exceção, sem substituir de forma sistemática a autoridade local. Já no Mali, a operação Barkhane da França tinha grande capacidade militar, mas foi amplamente contestada pela população, acusada de ingerência e de pouco respeito pelas comunidades locais.

O caso moçambicano difere justamente porque as forças ruandesas, ao contrário dessas missões multinacionais ou bilaterais, conseguiram construir laços directos de confiança com as populações. Não se limitam a combater insurgentes: respondem a assaltos, a disputas comunitárias, a situações emergenciais do dia-a-dia. Tornaram-se parte do tecido social e, nesse processo, passaram a exercer funções que ultrapassam a lógica militar.

Essa distinção é crucial. Em Cabo Delgado não se assiste apenas à presença de uma força estrangeira complementar, mas à substituição gradual do Estado por um actor externo que ocupa o centro da função soberana. O resultado é um cenário em que a soberania jurídica permanece em Maputo, mas a soberania prática e vivida no quotidiano das comunidades pertence a Kigali.

 

O DILEMA DA SOBERANIA

Estado ausente, autoridades emergentes: A situação levanta uma questão incómoda para Moçambique e para a região: o que significa soberania quando um Estado depende estruturalmente de tropas estrangeiras para garantir segurança em parte do seu território? A resposta não é binária porque a soberania opera, aqui, em três planos que se desalinharam: o jurídico-constitucional (quem detém formalmente o monopólio da força), o político-institucional (quem comanda e presta contas) e o empírico-social (quem a população reconhece como capaz de resolver problemas e assegurar bens públicos). Quando este último plano se destaca – isto é, quando as comunidades deslocam a sua confiança para actores que “fazem acontecer” -, emerge uma autoridade de facto que não coincide com a autoridade de jure. Em Cabo Delgado, esse desfasamento já é visível: as populações recorrem aos ruandeses porque, no seu quotidiano, eles desempenham a função essencial de proteção, que a literatura identifica como critério prático de autoridade pública.

De um lado, há quem veja na presença ruandesa uma solução pragmática: melhor depender de aliados firmes do que permitir que o terrorismo prospere e que investimentos estratégicos (como o gás) permaneçam paralisados. Este argumento privilegia a eficácia imediata e reconhece que, em “contextos frágeis”, a entrega de serviços e a segurança são frequentemente asseguradas por uma constelação de actores – estatais e não-estatais – em arranjos de co-governação, enquanto o Estado reconstrói capacidades. Do outro, a dependência prolongada corrói a legitimidade do Estado e cria um precedente perigoso: comunidades reconhecerem actores externos como autoridades principais, internalizando novas hierarquias que, com o tempo, cristalizam-se em lealdades e rotinas institucionais difíceis de reverter.

Não se trata apenas de segurança. Em Mocímboa da Praia fala-se de escolas construídas pelos ruandeses, de relações de proximidade cultivadas com a população, de uma integração cultural facilitada pelo uso do suaíli. Estes sinais importam porque a autoridade também é performativa e simbólica: quem educa os filhos, quem atende a chamada de emergência, quem media conflitos locais, vai sendo percepcionado como “governo útil”. Passo a passo, funções simbólicas e práticas do Estado migram para outro actor, produzindo uma “dupla delegação”: da coerção (força armada) e da presença social (serviços e mediação). A médio prazo, instala-se um risco de “captura de legitimidade”: a autoridade formal permanece em Maputo, mas a autoridade vivida, no plano comunitário, passa a residir noutro centro de decisão.

Dito isto, o dilema não se resolve com proclamações. Requer uma estratégia de transição com três pilares. Primeiro, enquadramento jurídico e político claro da presença estrangeira: acordos de estatuto de forças, regras de empenhamento e cadeia de comando que preservem a primazia decisória nacional e estabeleçam mecanismos de responsabilização por abusos. Segundo, reconstrução de capacidades das FADM e da PRM com foco na disciplina, logística, comando unificado e doutrina de proximidade às populações – porque a legitimidade empírica ganha-se no terreno e não em comunicados. Terceiro, metas públicas e verificáveis para a transferência gradual de responsabilidades: tempos de resposta, redução de incidentes, queixas registadas e resolvidas, inquéritos de confiança comunitária. Sem indicadores e calendários, a “solução temporária” tende a tornar-se arranjo permanente.

Há ainda uma dimensão regional e estratégica. A entrada de um actor extra-SADC como provedor central de segurança no norte de Moçambique reconfigura equilíbrios de poder no Índico e cria dependências políticas que transcendem o teatro operacional. Se a narrativa oficial continuar a divergir do que as comunidades vivem – silêncio ministerial, reafirmações genéricas e ausência de prestação de contas -, a erosão de legitimidade tenderá a aprofundar-se. Em contrapartida, se o Estado assumir a realidade no terreno, comunicar com transparência, fixar um roteiro de transição e mostrar progressos visíveis na conduta e no desempenho das suas forças, poderá reconstituir a autoridade que hoje se encontra terceirizada.

Em síntese, a soberania não desapareceu de Cabo Delgado; fragmentou-se. Enquanto a soberania jurídica permanece com o Estado, a soberania prática — aquela que as pessoas reconhecem quando pedem ajuda, quando abrem a porta, quando entregam um conflito a quem pode resolvê-lo — está, neste momento, a ser exercida por um aliado estrangeiro. Sem uma estratégia séria de reaproximação às comunidades e de reforma das forças nacionais, o “pragmatismo” de hoje pode tornar-se o precedente que consolida, amanhã, uma autoridade paralela no território moçambicano.

CONCLUSÃO: RECONSTRUIR A AUTORIDADE DO ESTADO OU ACEITAR A SUBSTITUIÇÃO?

Enquanto o governo insiste em reafirmar prerrogativas formais, os cidadãos olham para os ruandeses como a verdadeira garantia de ordem. É uma inversão simbólica de soberania, que mina a legitimidade nacional e expõe a incapacidade estrutural das FDS.

Reconstruir a autoridade do Estado em Cabo Delgado exige mais do que retórica. Implica reformar profundamente as forças armadas, investir em logística, treino e disciplina, e sobretudo reconquistar a confiança das populações, chefes locais, comunitários e religiosos. Caso contrário, Moçambique arrisca-se a assistir, em silêncio, à consolidação de uma autoridade paralela no seu próprio território.

No fundo, a questão em Cabo Delgado não é apenas quem controla as armas, mas quem detém a confiança. Hoje, essa confiança pertence aos ruandeses. Se nada mudar, a resposta à pergunta central – quem tem autoridade em Mocímboa da Praia e em Palma? – não será mais o Estado moçambicano, mas um aliado estrangeiro que se tornou soberano de facto.

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