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Quatro anos sem Mário Coluna

Ano de 2003. A história da sua vida, titulada o Monstro Sagrado, que me havia sido confiada, estava quase pronta. Apareceram então dois jornalistas portugueses a propôr que essa missão me fosse retirada e lhes fosse confiada. Coluna foi breve, mas incisivo na resposta: “eu estive mais de duas décadas a jogar ao mais alto nível por Portugal e vocês nunca se aproximaram. Agora, que um compatriota meu decidiu avançar, é que vocês 'acordam'? Esqueçam”!

O ídolo, a estrela que em mim morava deste Monstro (con)Sagrado, cresceu. E a responsabilidade também. Fiquei com a honra e o privilégio de escrever a biografia de Mário Esteves Coluna, um nome que tem que ser pronunciado com respeito, porque o aprumo e a lealdade do dono, de coluna sempre direita, assim o impõem. No próximo dia 25 deste mês de Fevereiro, faz 4 anos que perdeu a vida. Tanto moçambicanos como portugueses, temos que recordar e venerar esta esta figura.

Ele é… a montanha sagrada!

25 de Abril de 1974. Acordos de Lusaka, Governo de Transição, Independência de Moçambique. É aqui que o passado e o presente de Mário Esteves Coluna se entrecruzam. Depois de (per)correr o planeta… a correr, depois de registar, com letras de ouro, a sua imagem de marca como “manda chuva”, na Europa e no Mundo, graças aos pés, mas sobretudo à cabeça que ditava a liderança por onde passava, finalmente, a não enjeitada oportunidade de regressar e servir a sua Pátria.

Numa entrevista em Portugal, o Monstro já havia revelado uma mágoa que o acompanhou por toda a vida: a de não ter podido vestir, como jogador, a camisola da Selecção Nacional de Moçambique Independente. Viria mais tarde a ter o privilégio de ser internacional pela terra que o fez nascer, mas como seleccionador. Porém, antes disso, uma conquista irrepetível: a de primeiro campeão nacional, pelo Textáfrica.

Em tempo de “debandada” em direcção à ex-metrópole, Coluna cruzou os céus no sentido contrário. Para trás ficava a lógica do conforto, a segurança que o seu nome lhe permitia, criado com suor e sacrifício, granjeado numa das mais belas actividades: o desporto. O bichinho do amor à pátria e às origens, obrigou-o a regressar, de forma a contribuir para que os meninos da sua terra tenham esperança num sol mais brilhante.

Um estilo em extinção

Tudo nele era solene. O andar, o falar e até o comemorar. Ritmo morno, fala suave e lenta, mas incisiva. No interior das quatro linhas, funcionava como um GPS, uma placa giratória por onde o jogo passava, para ser pensado quanto à alternância para os flancos e aproveitamento dos espaços vazios.

Actuando pelo Benfica ou pela Selecção de Portugal, como meio-campista, passou a fazer parte de uma galeria de estrelas muito restrita, cabendo nela apenas jogadores como Didi, Beckenbauer e Platini. Uma espécie em extinção. A sua importância para o desenvolvimento do desporto-rei, foi reconhecida pela Federação Internacional de História e Estatística do Futebol, um departamento da FIFA que incluiu o seu nome como um dos 100 melhores jogadores do Século XX!

Capitão e protector

Nos dias que correm, pela Europa e pelo Mundo, a grande maioria das equipas queixa-se da falta de jogadores/patrões… “à Coluna”. Ele era um falso-lento, com uma resistência a toda à prova, que dispunha de uma apurada intuição para se movimentar junto à área adversária, juntando a isso um forte remate à meia distância.

Porém, como capitão, era um líder protector, que não admitia que ninguém crescesse para um seu colega. Nessas alturas, usava uma frase que intimidava os adversários: “Se tocas mais no miúdo, sais daqui com uma perna a lamber a outra”.

Aconteceu até frente a Pelé, quando um dia o seu colega da selecção portuguesa Morais se sentiu intimidado ao marcar o rei. Coluna foi-lhe dizendo: “Continua a jogar durinho, porque lá por ele ser chamado de rei, cá dentro não tem qualquer estatuto especial”.

Líder carismático

O que é que tornou este Monstro Sagrado tão carismático? Os 126 golos em 525 jogos oficiais com a camisola do Benfica? O facto de ser o jogador com mais jogos realizados com a braçadeira de capitão, de 1963 a 1970?

Talvez um pouco de tudo, a partir da imagem de marca que trouxe do berço, que lhe conferia autoridade e liderança, tanto dentro como fora do campo. E, claro, a sua anormal resistência, pois quando a maioria dos colegas e adversários se encontrava “com a língua de fora”, ele impunha as suas regras.

Das poucas vezes em que “perdeu a cabeça”

Um episódio inédito. Coluna reconhece que perdeu a cabeça, e optou pela agressão, mesmo assim não sendo expulso. Mais uma vez, ao papel de grande capitão juntou o de justiceiro.

Tudo aconteceu na Roménia, num jogo difícil, em que Eusébio estava a “partir a loiça” sendo alvo de uma marcação dura por parte de um latagão que não lhe dava tréguas, batendo forte e feio. A certa altura, o romeno pisou a Pantera Negra, que caiu e uma bota saiu-lhe do pé. O romeno pegou na bota para atirá-la para lá da vedação. Eu estava perto e segurei-a. Travámos uma pequena luta pela posse da bota e eu consegui arrancá-la. Ele preparou um escarro e cuspiu-me no rosto. Confesso que foi uma das poucas vezes em que perdi completamente a cabeça. Bati-lhe repetidas vezes na testa, com a bota que tinha na mão, fazendo sangrar. O árbitro, um inglês, correu para o local, já preparado para me expulsar. Mostrei-lhe o meu rosto cheio de ranho, misturado com saliva. O juiz raciocinou rapidamente, viu que a justiça estava feita, pois ninguém com uma bota na mão resistiria à tentação de tirar desforço após uma baixeza daquelas. Retirou do bolso de trás um lenço, limpou-me a cara, e… mandou prosseguir o jogo sem me expulsar.

A centímetros da pide

Praga, 1966. Eliminatórias da selecção portuguesa, para aquilo que viria a ser uma grande epopeia lusa, com a conquista do terceiro posto no “Mundial”. Comunismo lá. Fascismo em Portugal. A desconfiança entre tudo e todos era total. “Por isso é que Salazar governou até á morte”. O Monstro esteve a milímetros de sentir na pele aquilo que já havia acontecido ao seu colega Santana e a Daniel Chipenda: a estada nas masmorras da PIDE. Uma circunstância feliz salvou-o:

Essa história da PIDE tem a ver com uma viagem à Checoslováquia. Jogo difícil, em que alinhámos muito tempo com menos um jogador e rendemos até aos limites. Mas antes, apareceram-nos no hotel alguns estudantes angolanos, pediram convites, pois a ideia era apoiarem a selecção portuguesa.

Coluna, como capitão, reuniu os ingressos que os colegas não precisavam e ofereceu-lhes. Nada mais do que isso. A vitória por 1-0, com golo de Eusébio foi memorável. E deu direito a festa, em pleno cenário comunista numa casa alheia, episódio inofensivo e fugaz, rapidamente esquecido.

Só a PIDE não estava de acordo. Algum acompanhante/infiltrado viu nisso um pactuar com os terroristas. Chegados à Lisboa, dias depois, o Monstro recebia uma convocatória para ir à PIDE. Algum engano? Não fazia a mínima ideia do que se tratava, mas a verdade é que os seus pés já não se deslocavam com a segurança com que o faziam na relva, o seu reino.

Num “terreno” desconhecido e hostil, de pergunta em pergunta, lá chegou a um gabinete guardado à porta por dois “caras-de-pau”, dirigindo um ar de poucos amigos ao recém-chegado, “borrifando-se” (talvez por desconhecimento), no seu estatuto.

Mandaram o Monstro entrar para o gabinete para as formalidades que o conduziriam à cela PIDESCA. O inspector que o atendeu era benfiquista e seu admirador. “Olha o Mário, meu grande capitão. O que o traz por cá?” Com a habitual calma mas com o coração aos pulos mostrou o impresso que o convocava. Finalmente, fez-se luz e safou-se.

O impressionante BI

Mário Esteves Coluna nasceu a 6 de Agosto de 1935, em Magude e faleceu em 25 de Fevereiro de 2014.

Começou a jogar a ponta de lança, no João Albasini e no Desportivo de Lourenço Marques. Na Europa, actuou no Benfica, de 1954 a 70; fechou a sua carreira no Olympique de Lyon, em 1971.

Nas 16 temporadas na equipa principal do Benfica, participou em 677 jogos, num total de 59.702 minutos, marcando 150 golos. Ainda hoje, é o futebolista que mais vezes capitaneou a equipa encarnada: 328 jogos. Foi 10 vezes campeão português (55, 57, 60, 61, 63, 64, 65, 67, 68, 69).

Venceu seis vezes a Taça de Portugal.

Foi bicampeão europeu pelo Benfica (61 e 62) e três vezes finalista vencido (63, 65, 68).

Actuou 60 vezes pela selecção portuguesa, tendo sido capitão em 21 jogos. O ponto mais alto foi o 3º lugar, no “Mundial” de Inglaterra, em 1966.

Realizou 60 jogos (com 11 golos) na Taça dos Campeões Europeus e dois na Taça UEFA.

Capitaneou a selecção da Europa frente ao Resto do Mundo.

Como treinador: Orientou as equipas Sport Lisboa e Huambo, Textáfrica do Chimoio, Ferroviário de Maputo, Maxaquene, Desportivo de Maputo e Ferroviário da Beira. Foi seleccionador nacional de Moçambique.

Distinções: Sete louvores da Federação Portuguesa de Futebol: Medalha de Ouro ao Mérito Desportivo, Medalha de Prata da Ordem do Infante D. Henrique (a mais alta condecoração portuguesa), pelo brilhante comportamento no Campeonato do Mundo de 1966. Louvor da Direcção-Geral dos Desportos, em atenção a toda a sua exemplar carreira desportiva, e Medalha Nachingweia.

 

 

 

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