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“Quando tocamos o que é nosso, nunca ficamos desactualizados”, Childo Tomás

Um dos grandes baixistas moçambicanos. Começou a tocar há 41 anos. De lá a esta parte, a música, para Childo Tomás, é o princípio e um meio privilegiado para tocar a sua tradição, a sua cultura. Por essa razão, o artista que vive na Espanha afirma categoricamente: “Quando tocamos o que é nosso, nunca ficamos desactualizados”. Nesta entrevista, partindo do seu álbum de estreia, Moçambique ni n´tumbuluku, Childo sublinha a ligação que tem com terra, refere-se a um tributo a Pedro Langa e, igualmente, deixa algumas conselhos para os moçambicanos.

 

 

Moçambique Ni N´Tumbuluku é o seu álbum de estreia. Que horizontes quis abrir com este projecto?

Este projecto traduz tudo o que eu sentia quanto ainda vivia em Moçambique. 90% das músicas de Moçambique Ni N´Tumbuluku foram criadas em Moçambique, baseadas na minha tradição. Ou seja, com este projecto o meu interesse foi sempre trazer a tradição ao de cima. Quis levar ao mundo a diversidade cultural do nosso país.

 

Num artigo sobre o seu disco, publicado há seis anos, o ensaísta Cremildo Bahule afirma que Childo interessa-se em evidenciar que Moçambique é o eloquente exemplo de vitalidade cultural no mundo. Quer argumentar?

Eu agradeço esse comentário, mas acredito que são muitos os moçambicanos que contribuem para evidenciar tal vitalidade cultural do nosso país. Sou uma parte de muitos valores que existem em Moçambique. Penso que sou um fragmento dessa utopia que transportamos para fora. Isso faz parte da minha missão.

 

O que o move nesse processo de transportar as suas raízes e a sua cultura para fora do seu continente através da música?

É simples. Nós somos representantes da cultura, onde quer que estejamos. Lembro-me que, quando vivia em Moçambique, pensava muito no estrangeiro e nas culturas do Ocidente. Entretanto, quando se está distante das raízes, da sua mãe (terra e biológica), começa-se a dar mais valor ao que é nosso. Quando vim para Espanha, trouxe instrumentos como timbila. E com o som desse instrumento mágico, exótico para alguns, fui dando valor ao que eu sou. Nunca fui timbileiro e nem sou agora, mas comecei a tocar e a combinar sons com o instrumento. Ter vindo para este lado do mundo, permitiu-me perceber que temos muita música no país que a devemos fazer conhecer. Também por isso, decidi transportar as minhas raízes através da minha música.

 

Quando compõe ou toca, pensa em contar uma história para o mundo através do imaginário da sua gente, certo?

Certo. Há uns três dias, por causa da quarentena – descobrimos coisas positivas com esta pandemia –, estando na varanda, dia de sol, sem poder sair de casa, apareceu-me a imagem de Pedro Langa na mente. Lembrei-me dos momentos passados com ele em Xai-Xai, naquele período da guerra, dos episódios com Alambique e com Ghorwane, e etc. Nesse instante, pelo Pedro, inspirei-me e pus-me e trabalhar numa cancão. Liguei as máquinas e comecei a gravar um tema, para que, onde quer que ele esteja, o seu espírito fique em paz. Tudo foi tão real que pretendo gravar uma música com a instrumental. Portanto, respondendo à sua pergunta, sempre que componho, tenho uma história por detrás, e toco com alma, com um sentimento pela minha terra.

 

A língua é um factor determinante nesse processo criativo?

É, sim, e sempre será. A nossa língua é a nossa língua. Fico preocupado com a actual e com futura geração do nosso país. Estamos perdendo o orgulho das nossas línguas e em nós mesmos. Eu falo rhonga com o meu filho aqui na Espanha. Essa é a minha língua, e não o português. Em Moçambique está a acontecer uma coisa grave. Vejo jovens mais preocupados em dizer palavras angolanas ou inglesas do que das línguas bantu do país. Certamente, a culpa é dos pais, que não ensinam as suas línguas aos filhos. Ainda achamos que as nossas línguas bantu são de cão. Por isso mesmo, vamos perdendo o que é nosso.

 

Como pensa na sua cultura no contexto universal?

Em geral, penso que a cultura moçambicana é potente. Tem muitos recursos. Vejo o Xidiminguana, o Mutcheca, que tanto me inspiram. De Norte ao Sul temos muita música, e, nos tempos de Samora, com o festival das culturas, evidenciou-se muito isso. Acho que o artista deve-se preocupar em potenciar os recursos culturais do seu território. Os produtores também devem ser selectivos, sem desprezar os seus valores. Somos uma potência cultural em teatro, escultura, pintura e etc. O que temos de fazer é zelar pelo que é nosso, ao contrário do que acontece nos últimos anos, em que a tendência é investir no que é dos outros. Não me sinto bem por nos orgulharmos pelo que é de fora. Isso me preocupa. Ou seja, deixamos de dar valor no que realmente importa. Temos de alterar esse problema.

 

Considera o seu projecto “Messengers” a raiz da união de todos. Como a música pode ser um factor dessa união?

Entendo que muitas vezes as pessoas pensam nas origens das outras. “Messengers” lembra-nos que todos somos mensageiros de passagem e que todos devemos deixar a nossa mensagem na terra. Por isso escolhi esse título. Cada um deve fazer a sua parte, e na produção deste projecto uni valores latino-americanos que se parecem com África, e a minha filha [Xiluva Tomás, autora do disco Missava ni tilu] tocou violino para o projecto.  

 

O seu percurso artístico cruza muito com Omar Sosa. Que representa para si este artista?

É um grande amigo, temos uma história muito linda já há 20 anos. Juntos criamos e recriamos uma linguagem. Quando o conheci, eu acabava de chegar a Barcelona. Na altura eu tinha muitos projectos e ele propôs que tocássemos juntos. Começamos a trabalhar e aprendemos muito um do outro.

 

Entre o baixo e a voz, há algum elemento que complementa o outro, no seu caso?

Sim. Eu não sou cantor. Sou mais instrumentista do que cantor, mas admito que as duas coisas estão relacionadas. No meu caso, o baixo e a voz têm uma razão de ser, afinal tudo surge dentro de um ambiente de paz, de luz e com ritmo. Paz, luz e ritmo. Esta trindade, depois, complementa-se com melodia. Eu não penso nas notas, quando toco, mas no que quero criar, dentro de uma certa harmonia. O baixo e a voz são os meus motivos. Tento sempre criar algum motivo.

 

Esse motivo é acompanhado por uma preocupação de se adaptar aos tempos?

Não, não penso nisso. Eu não toco para os outros, mas para mim, primeiro. Não tenho tendências de tocar outras coisas para estar na moda. Por isso me preocupo quando outros pensam que o que vale é o actual. Podemos modernizar sem romper e sem destruir a parte fundamental da nossa construção. Não entro nesses beats simples. Quando tocamos o que é nosso, nunca ficamos desactualizados.

 

Como é para um moçambicano afirmar-se fora? Como foi no seu caso?

Isso, de facto, não é só uma questão de talento. Não há nenhum deus ou uma fórmula mágica. No entanto, há que conhecer gente, envolver-se em eventos internacionais e etc. É um outro ciclo, que não é fácil. E se os músicos não viajam muito de Moçambique para fora é por causa do custo que isso implica. Há 15 anos, por exemplo, grupos com 10 elementos conseguiam mais possibilidades de viajar. Agora é mais difícil.

 

Neste momento de isolamento social, com muitos casos de COVID-19 na Espanha, como tem sido o seu quotidiano?

Há eventos negativos que criam coisas positivas. Há pessoas que, antes, nunca tinham lido um livro. Agora lêem. Eu faço música todos os dias. Inclusive, estou a pensar em criar um álbum com tudo o que estou a criar nesta temporada. Até lá, vou criando. Enfim, esta situação da pandemia mexe muito comigo. É muita gente a morrer e isso me entristece.

 

Uma mensagem para os seus compatriotas?

A COVID-19 é um assunto muito sério. Nunca tinha vivido uma história como esta. Não vamos falar de final do mundo, mas é muito sério. Sinto isso aqui na Espanha. Há que tomar todas preocupações necessárias. Sei que as nossas condições não são as desejáveis, em Moçambique. Temos de vender na rua a fim de conseguir dinheiro para alimentar os nossos filhos. Mas temos de nos cuidar. Podemos olhar para alguém, pensarmos que está tudo bem, e, depois, descobrirmos que não está. Então, recomendo o maior cuidado, sem confiarmos na teoria do clima. Espero que a situação não agrave. Caso contrário, pode ser um desastre.

 

Perfil

Childo Tomás é o nome artístico de José Júlio Tomás. O baixista, percussionista e cantor nasceu a 18 de Agosto de 1963, em Maputo. Começa a tocar aos 16 anos de idade, fazendo, nessa altura, parte de vários grupos de música moçambicana tradicional e popular. Entre 1982-92, fez parte do grupo Alambique, com o qual participa em diversos espectáculos, em Angola, no Zimbabwe, na Suécia, Noruega e Dinamarca. No final de 1994, emigrou para Espanha, onde teve a oportunidade de iniciar profissionalmente sua carreira musical. Childo Tomás participou em grandes festivais mundiais, como: Festival de Jazz de Barcelona, Festival de Jazz de Roma, Blue-Note (Tokio- Yokohama- Nagoia) e Festival de Jazz de Chicago.

 

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